(daqui)
abril 28, 2020
Isolamento I (actualização II)
(28/04/2020)
Tudo volta, até as obras. A
sua evolução foi sendo exposta aqui e aqui. O resto é obra da primavera, expressa
nas folhagens das árvores. A minha rua e a senhora da caixa do Mini tinham
ambas razão: são duas construções, a mais recente teve início ontem, e fica bem
ao lado da referida anteriormente, uma supostamente ligada à distribuição, outra, dizem, à comida rápida,
assim mesmo na língua de Camilo, que nunca a deverá ter provado. Leonardo
Benevolo, no seu livro “A cidade na história da Europa” escreve: as obras que hoje fazemos nas cidades – as
respostas que damos aos nossos problemas momentâneos – serão vinculativas por
muitos anos, mesmo quando os modos de pensar e de viver já tiverem mudado, e
como fazemos modificações cada vez maiores e mais frequentes, vamos prejudicar
cada vez mais a vida das gerações futuras, sem todavia sabermos prever e gerir
suficientemente os efeitos remotos dos nossos actos. A cidade, diz-nos Italo
Calvino em “As Cidades Invisíveis”, não
conta o seu passado, contém-no como as linhas da mão, escrito nas esquinas das
ruas, nas grades das janelas, nos corrimões das escadas, nas antenas dos pára-raios,
nos postes das bandeiras, cada segmento marcado por sua vez de arranhões,
riscos, cortes e entalhes. Olho lá para fora com os olhos e os ouvidos, e
recordo-me do título de um filme que anunciavam recentemente num dos canais da
tevê: grávida…mas pouco. É isso
Braga: cidade…mas pouco.
abril 27, 2020
Isolamento (XXV)
"Cerca de quatro anos antes, no dia em que terminara o ensino secundário, o irmão Buddy tinha morbidamente profetizado, enquanto ela sorria em cima do estrado, que era muito provável que acabasse por se casar com um homem que tivesse uma tosse seca. De modo que também havia isso no rosto dela."
abril 26, 2020
abril 25, 2020
[e agora algo completamente diferente III]
É um luxo poder não ligar ao 25 de Abril. Mas isso também foi uma conquista.
Miguel Esteves Cardoso (Público, 25/04/2020)
abril 24, 2020
abril 23, 2020
Isolamento (XXIV)
Gosto dos títulos de alguns livros de Ray Bradbury: “A morte
é um acto solitário”; “Teremos sempre Paris”; “Um cemitério para Lunáticos”; “Fahrenheit
451”. “Fahrenheit 451” e “A morte é um acto solitário” são imprescindíveis ao atravessamento
do mundo de uma forma minimamente diligente. Teremos sempre Paris, We'll always have Paris é uma deixa
inesquecível de Casablanca, embora subalterna a Play it again, Sam, esta última, segundo parece, nunca dita, pelo
menos dessa forma. Apesar disso, acabou num filme escrito e protagonizado
por Woody Allen, embora realizado por Herbert Ross. A vida tem dessas coisas. Teremos sempre Paris, de Bradbury, na edição portuguesa da Bizâncio, apresenta-se, legitimemente, como uma das piores capas atribuídas numa edição em língua portuguesa a um escritor que se consiga ler sem vomitar. Aquela imagem do velhinho em pano de fundo, as cores escolhidas, o tipo de letra, tudo contribui para estarmos perante uma obra ligada ao oculto sensaborão, induzindo em erro os menos atentos. No conto Massinello Pietro, Bradbury escreve: Olhou à sua volta, o mundo estava cheio de estátuas, como ele outrora tinha sido. Havia tantas pessoas que já não conseguiam mexer-se, nem sequer sabiam como haviam de começar a andar outra vez para qualquer lado, para trás, para a frente, para cima, para baixo, porque a vida os tinha picado e aturdido e batido até ficarem num silêncio de mármore. Bradbury, escritor (também) de ficção cientifica, perceberia hoje que a realidade ultrapassa e, muito, a ficção. Acho que ele sabia disso...
abril 22, 2020
abril 21, 2020
Isolamento (XXIII)
Depois da biologia, finalmente,
tempo para a geografia: montanhas, planaltos, planícies. A curva, após
movimentos anticlinais e sinclinais, conforme o programa, assumirá a sua
natureza rectilínea, embora, neste particular, estejamos inclinados a aceitar a
teoria de Salinger (já lá iremos, a Franny e também a Zooey) sobre aquela
espécie de geometria semântica, na qual a distância
mais curta entre dois pontos é um círculo quase completo. Depois disto, o
deserto, qualidade de que, em breve, serão revestidos os nossos pensamentos,
lavrados pela economia. Verdade seja feita, e não dita: sempre temos os abaixo
assinados e a revolta na Bounty das redes sociais (único aspecto do social não
confinado, por razões ainda desconhecidas). Entretanto, seria interessante,
antes de nos aspergirem com as novas homilias económicas, olharmos para isto e para aquilo. Interessante, e um bom ponto de partida para conhecermos as
linhas com que se cosem os nossos contornos nacionais. Temos mapas disso, mas a nossa recusa
em contribuir para teorias conspirativas é ponto de honra.
abril 20, 2020
Isolamento (XXII)
Pensamento do dia:
E se aprendêssemos linguagem
gestual? A quantidade de perdigotos diminuiria consideravelmente...
abril 19, 2020
Isolamento (XXI)
Por acaso é domingo. Limpa-se a
casa. O pequeno-almoço é servido a qualquer hora; o velhinho Grundig em cima do
frigorífico dá o mote, está sol, o velhinho Grundig está sintonizado na RUM: música
indie de elevador, música de alguns conhecidos de Braga, um toque africano, ou
dois, a rádio está em modo aleatório, a publicidade é de antes do apocalipse, deixem
passar, às vezes uma ou outra pérola, Stone Roses (“i wanna be adored”) e The
Smiths: “There Is a Light That NeverGoes Out”. Sou um incondicional dos Smiths,
e este tema (entre outros) musicalmente (para mim) sempre foi um prelúdio de primavera,
sol, rinite. Mas uma primavera de destroços (roubado aos Mão Morta), com um
lado negro (mas tudo isso vem da letra acoplada), ou nocturno, para ser mais óbvio.
E também prazer. Cumplicidade. Inquietude. Uma espécie de yin-yang (melodia-letra)
pop. Tudo junto, fica muito perto da perfeição (beleza?). Ou do precipício. Não
será a mesa coisa.?
And if a double-decker bus
Crashes into us
To die by your side
Is such a heavenly way to die
And if a ten-ton truck
Kills the both of us
To die by your side
Well, the pleasure - the privilege is mine
abril 18, 2020
Isolamento (XX)
Entretanto, na página duzentos e
trinta e um (edição Europa- América, 1973 – a coisa já vem daqui), de “O
Zero e o Infinito”, duzentas e trinta páginas de amarelecimento (também já li
as restantes, incluindo o posfácio, e comprova-se esse amarelecimento macilento
das páginas) depois, Arthur Koestler escreve: havia um erro no sistema; talvez residisse no preceito que até agora
considerara incontestável, em cujo nome sacrificara outros e estava ele próprio
a ser sacrificado: no preceito de que o fim justifica os meios. Fora esta frase
que liquidara a grande fraternidade da Revolução [assobios para o ar] e os transformara a todos em loucos furiosos.
Que escrevera ele no diário? «Atiramos borda fora todas as convenções; o único
princípio que nos guia é o da lógica consequente; navegamos sem lastro moral.»
Estivemos a rondar a decomposição aqui e ali. E noutros locais certamente.
abril 17, 2020
abril 16, 2020
Isolamento (XIX)
A rádio terá os seus seguidores, mas
de pouco nos vale quando se torna de companhia. Mais das vezes a companhia é
ruído, alegre adormecer, enchentes de alma, visitas às redes. Arrisco e ouço, com algum pasmo, a Antena 3 e a RUM (rádio
universitária do Minho). A primeira é pouco mais do mesmo, e alguns programas
de autor. A segunda quer ser do mesmo, tornar-se gente séria. E alguns
programas de autor. Sintonizo-me, deixa lá ver.
Através da tevê vou conhecendo William
Wisting da série policial norueguesa “Wisting”, baseada nos acontecimentos de
dois livros de Jørn Lier Horst: “O Homem das Cavernas” e “Cães de Caça”. Fica
para os lados do AMC e tem a sua pinta. Na RTP2 passa a série “Derrubados” (Taken
Down, no original). Artur Albarran diria que é o drama, o horror, a exploração
dos refugiados que, chegados à Europa, respiram o ar saudável da escravidão. E
teria razão. Embora a série se perca em alguns maneios próximos da xaropada, o
que nos obriga a considerar outras opções, como a Segurança Nacional, ou mesmo
os Mortos Vivos (temporada 25). A propósito, o aclamado (e logo esquecido) “Narcos”
vale pelo primeiro episódio. Aquela voz off a dar-nos conta do enquadramento
histórico torna a série balofa como a barriga do Escobar brasileiro, estorvada
pelo aroma (imposto) a documentário: plata
o plomo?
Agradáveis surpresas, ainda que a
prestações: "Breakfast at Tiffany's", uma comédia romântica, saída da pena de
Truman Capote e adaptada ao cinema por Blake Edwards, com Audrey Hepburne e
(consta que) outros actores; e “Silêncio”- filme sonhado e realizado por Martin
Scorsese, sobre as missões (doutrinais) dos Jesuítas portugueses no Japão, com
resultados que nos devem deixar orgulhosos (a apostasia é um tema que fica para
depois). O presidente Marcelo certamente terá ligado a Scorcese, felicitando-o
pela ideia e pelo filme e, quem sabe, pelo português perfeito dos actores,
entre os quais, o sr. Liam Neeson, isto é, Cristóvão Ferreira, meia hora de
representação, se tanto, com direito a figura de capa. Os outros actores (que
por acaso aparecem durante parte significativa do filme) são Andrew Garfield (Sebastião
Rodrigues), e aquele tipo que era condutor de autocarros e poeta no filme de
Jarmusch “Paterson” (um filme que deu que falar na minha cabecinha), chamado Adam
Driver, ou Francisco Garupe, missionário que morre afogado. E assim acontece. Agora vou ali ver a chuva cair.
abril 15, 2020
Isolamento (XVIII)
(open)
Alerta em números do fundo
monetário internacional!
A recessão está aí. Vai estar.
Número: 8% (até onde a vista alcança). O território português confinado, mais
uma vez. E o desemprego, quanto? Número: 14% (até onde a vista alcança lê-se agora:
preparem-se). Haja saudinha…
A recessão vai estar, e o FMI
também: é o padrão expectável. Está vento, arrasta chuva.
A economia vai emagrecer. As
expressões gastronómicas ajudar-nos-ão a percorrer o caminho.
Vamos continuar a precisar de
máscaras. Quando o ar se tornar respirável, compraremos a crédito.
Futuramente, num quadro de possível
normalidade (ou normalidade possível?), de acordo com o planeamento devido, com
garantias de estabilidade, poderemos aspirar ao aconchego do rebanho: nada será
como dantes.
Mais palavras em promoção, serão o futuro
património da imaterialidade.
(é como o São João imaterial )
Chame-se o poeta Ruy Belo:
O português paga calado cada prestação
Para banhos de sol nem casa se
precisa [mas por agora dá jeito].
abril 14, 2020
Isolamento (XVII)
Se tem febre e tosse ou garganta dorida, fique em casa: assim
começa “O Planeta dos Macacos – A Revolta”. Eu tinha estado a rever “O Planeta
do Macacos – A origem”: a ideia era criar um medicamento para o Alzheimer,
testado em chimpanzés (a primeira versão do medicamento era inclusive testada no
pai do protagonista), criando assim o retrovírus ALZ-113, desembocando a
brincadeira na doença da Gripe Símia e numa pandemia mundial de consequências
terríveis. O meu cérebro cozinhou ali mesmo uma ou duas teorias da conspiração,
infalíveis. Após vinte e sete minutos de filme, observando alguns chimpanzés
importantes a cavalo (para quando uma revolta dos cavalos? - digo eu), decido ir ler um pouco e retomar as teorias conspirativas mais tarde, ao sol.
Lá fora o silêncio era total. Sentei-me,
na companhia de Arthur Koestler (“O Zero é o Infinito”). Lá fora o silêncio era total, dizia Arthur Koestler. Todo o movimento da prisão estava congelado
na escuridão. Fumei um cigarro. Acho que bebi água. Fui dormir.
Não penses, faz: constava de um letreiro pendurado por cima da máquina
de escrever de Ray Bradbury. E assim terá sido por mais de setenta anos, fonte fidedigna.
Não penses, faz: lê-se na introdução
ao livro de contos “Teremos sempre Paris”, de Ray Bradbury. Aconteceu-me hoje
de manhã. O Carteiro ainda toca, pelo menos uma vez. E desta vez trouxe boas
notícias: “Teremos Sempre Paris”, e “Franny E Zooey”, de J.D. Salinger.
Entretanto, fui tomar o pequeno-almoço.
abril 13, 2020
Isolamento (XVI)
(Agora mesmo, na rádio, The Velvet Underground: sunday morning…)
Números, estatísticas: fechados
em casa, 14% dos portugueses passaram duas semanas sem sair, lê-se no
Público de hoje. É muito papel higiénico.
A pandemia resultou da
desterritorialização, é a manifestação extrema da doença tecno-capitalista que
há mais de dois séculos se infiltrou nas sociedades humanas, escreve José
Gil (Público). Ensaio uma saída de fininho da subjectividade digital.
Rastreio digital:
Catedral vazia de
fiéis mas repleta de cristo (Correio da Manhã)
Costa às compras sem
os receios de Marcelo – Vídeo mostra Costa a levar a mão ao nariz (Correio
da Manhã)
Soltos pelo vírus (Jornal
de Notícias)
(sem comentários)
O bairro é o mundo. O stock de mal-estar não é ilimitado.
A propósito: O presidente Marcelo Rebelo de Sousa já falou com Luís, o enfermeiro de Boris
Johnson (Expresso online). A GNR
identificou promotores do “beijar da cruz” em Barcelos (Público online).
Sem sugestões.
Uma palavra para 2020: confinamento. Em todos os sentidos.
Incluindo o gosto.
abril 12, 2020
abril 11, 2020
Isolamento (XV)
Estive a pensar: lá
fora é o exterior?
Um exemplo: A cultura vai ter de ocupar as ruas, vai ter de ocupar as cidades,
diz uma ministra. O campo está dentro de nós, é roupa de andar por casa, uma
ideia velhíssima: a província.
Livrarias independentes juntam-se e lançam campanhas. A rua não o
sabe. Dentro de portas ainda há rua. As muralhas têm as suas portas e, lá
dentro, ruas. Das ameias vê-se quase tudo.
Sucedem-se: movimentos não
visíveis a olho nu. A seguir ao pico será a planície. É uma pergunta?
O mundo biológico não quer saber
da geografia (pano para mangas).
Lido cá de dentro, “Victoria”, de
Knut Hamsum, parece escrito sob o peso de um universo onde o mundo está apenas
a começar a morrer. Já morre há alguns dias. O filho do moleiro ainda escreve
poesia: estive a olhar as minhas fantasias
onde o sol é muito forte [e queima].
Arthur Koestler escreveu “O Zero
e o Infinito” (saiu da minha caixa de primeiros socorros). “O Zero e o Infinito”
é uma prisão: mesmo se considerarmos o exterior, dentro de cada um habita já
uma prisão: não havia certezas; só o
apelo a esse oráculo trocista chamado história que só lavrava as suas
sentenças quando os maxilares dos que para ele apelavam se tinham transformado
há muito em pó.
Ganha pouco [lay-off assim de forma simplificada]: bom nome para uma loja, inspirador de
confiança (Flaubert)
abril 10, 2020
abril 09, 2020
Isolamento (XIV)
Trieste: com imaginação e algum álcool à mistura, soaria, saído da
boca de um amigo açoriano, como triste.
A altas horas da noite, claro. A altas horas da noite da sua vida, Haya
Tedeschi espera. A sua história é pequena,
escreve Daša Drndić, uma das inumeráveis
histórias sobre encontros, sobre os vestígios preservados do contacto humano. Haya
vai retirando de um grande cesto vermelho pedaços da sua vida, e a história da
sua família agita-se em contacto com o ar (por vezes irrespirável) da sua
memória. Haya Tedeschi espera em Gorizia (ou Gorz - conforme nos deslocamos do
Império Habsburgo à Itália), localizada a noroeste de Trieste, junto à
fronteira com a Eslovénia. Esta zona é uma gamela (o uso desta palavra é
intencional) cultural em constante vaivém de impérios, fronteiras, guerras e
morte. Haya espera o seu filho. Sessenta e dois anos passaram.
Daša Drndić não aprecia
particularmente a expressão ficção
documental como classificação para o seu método de trabalho, ainda assim,
na página 417 (nota da autora e permissões) escreve: no espírito e na tradição estabelecida da ficção documental, integrei
as vozes de muitas figuras e palavras de muitos escritores ilustres. A sua
escrita é uma mistura de ficção e faction
(neste caso literature faction),
isto é, um texto sustentado em figuras e eventos históricos reais misturados
com ficção, socorrendo-se de fotografias, documentos, transcrições. Esta é uma história da decomposição que trespassa o século XX.
Como é que Haya conhece e se
enamora de Kurt Franz? Pois, na tabacaria onde trabalha. Franz tem 30 anos,
veste uniforme (já o imaginamos?), é vistoso,
alto e forte e, oh, gentil. A sua alcunha polaca é
“Lalka”, isto é, boneca. Franz é fotógrafo amador (parece que dos maus). Haya
passeia com Franz: encontra-se com ele sorrateiramente nos arredores de
Gorizia, vão a Trieste à ópera, ao cinema, sentam-se nas esplanadas. Kurt conta
bonitas histórias a Haya, o seu cão Barry, o seu trabalho na Polónia numa linda
floresta, perto de uma encantadora
estação ferroviária, onde havia um parque zoológico. Bons tempos.
À sua volta, além da guerra,
sucedem-se as viagens dos comboios de mercadorias com paragem em Triste e Gorizia
(durante a noite). É preciso ordem. Destino: Mauthausen, Dachau, Treblinka,
Auschwitz. Os nomes de cerca de nove mil
judeus que foram deportados de Itália, ou mortos em Itália, ou nos países que
Itália ocupou entre 1943 e 1945, constam deste livro (páginas 173 - 233).
(Nem seria necessário ir para longe: San Sabba também dava conta do recado). Existem
outras listas disponíveis, da Aktion T4 1943, por exemplo. Atrás de cada nome
há uma história.
Kurt Franz (assim por alto): SS- Untersturmführer, nasceu em 17 de
Janeiro de 1914, em Düsseldorf. Cozinheiro. Serve no exército de 1935 a 1937. Alista-se nas Waffen-SS, com o número
319 906. Inicia a carreira em fins de 1939 como cozinheiro no centro
de eutanásia de Grafeneck. E depois? Bom, Kurt Franz ainda trabalha como
cozinheiro em Buchenwald e em 1942 vai para Belzec e a seguir para Treblinka. Treblinka torna-se o seu reino. Depois
da revolta de agosto de 1943, torna-se comandante do campo. Em Treblinka pavoneia-se, cavalga, sai de manhã
para uma corrida, canta, canta, (…) mantém-se
em forma, cuida do seu belo corpo, e o seu fiel Barry está sempre atrás dele.
Gosta de flores. Antes de encerrar o
campo, Kurt Franz passa o tempo a matar pessoas. E depois? No final de 1943 Kurt Franz é transferido para Trieste,
onde conhece a judia Haya. E depois?...
Nota: “Trieste” é traduzido do inglês por António Pescada. “Trieste” é o título da edição inglesa. O título original da edição croata é Sonnenschein: uma palavra alemã que quer dizer luz do sol, segundo creio. Percebo que Trieste (um porto histórico atestado de estórias e mitos) como título seja muito estimulante. Não percebo a necessidade de os leitores portugueses lerem uma tradução da versão inglesa. Arriscar-me-ia dizendo que algo se perdeu?)
abril 08, 2020
abril 07, 2020
Isolamento (XII)
(masks)
Ir às compras em grupo. Usar
máscara à chuva. Arranjar o cabelo por portas travessas. Observar distância
social de dois metros (com ar de atenção redobrada e não fingido nojo), e
depois sentar-se com a tal conhecida
a uns dez centímetros, não esquecendo de lhe amarrar o braço enquanto tagarela.
Usar máscara deixando o nariz de fora (para respirar melhor). Passear à noite
enquanto o vírus dorme. Continuar a frequentar alguns estabelecimentos
comerciais abertos, para depois indignar-se nas redes
sociais. Praticar mini botellón (beber
cerveja em copos de papel) à porta da padaria, ou ficar por ali em conversa de
café, cavaqueando sobre as paragens da polícia e as últimas estatísticas. (Eis
algumas excepções(?) que confirmam a regra)
Esboços, diplomas, ensaios,
testes, gráficos, ventiladores em trânsito. Curvas erráticas. Poesia. Retificações.
Reuniões ao mais alto nível. Reuniões ao mais baixo nível. Com máscara, dizem
uns, sem máscara, dizem outros, no entanto, acrescentam ambos. O Presidente da
República fala mais uma vez à nação, a vigésima oitava, e depois vai ao pão. As
estatísticas aproximam-nos. Paulo Portas insinua-se de forma irrevogável. Fazem-se
contas à vida sem saber para que rua esta se dirige. As redes socais escavam
uma saída para a celebridade: vamos ficar todos bem.
abril 06, 2020
Isolamento (notas)
"A Arte Eléctrica em Portugal" é o único programa (vários episódios) de música da
televisão portuguesa. Por acaso é um documentário: jornalistas, produtores, radialistas
(vamos pô-los assim num saco), músicos e áreas adjacentes, como editores ou
programadores, dizem umas coisas, e nós lá vamos ouvindo e esperando pela
música, enquanto percebemos que tudo tem uma história e até fazemos parte dela.
No programa da semana passada o tema era “A Era Global” (está disponível). Fui
marcando com um sorriso os músicos e as bandas que já tinha assistido ao vivo (todos,
exceptuando a Rita dos sapatos vermelhos), incluindo o improvável
Tiago Miranda, mais conhecido como Conan Osíris: foi em Braga - noite branca -
numa época (longínqua) em que a distância social mínima era de dois milímetros e
ainda assim não era respeitada.
abril 05, 2020
Isolamento (XI)
Curzio Malaparte parece um nome
saído de um Western Spaghetti. Curzio Malaparte é o pseudónimo de Kurt Erich
Suckert, nascido em Prato, Itália, a 9 de Junho de 1898, filho de Erwin
Suckert, de origem alemã. Malaparte foi quase tudo: teve uma educação
proletária (tinha sido confiado a uma família de operários), aderiu ao partido
republicano (do qual foi secretário), alistou-se (muito jovem) como voluntário
na Legião de Garibaldi, combatendo em França, na primeira Guerra Mundial. Com a
entrada da Itália na guerra alistou-se como voluntário, começando, aos
dezassete anos, a trepar na hierarquia, de soldado raso a comandante, gaseado
em Bligny, as sequelas pulmonares acompanhar-lhe-ão toda a vida. Volta a Itália
em 1921, após um périplo (vamos assim chamar-lhe) burocrático por vários
países, para trabalhar como jornalista e escritor. Adere ao partido fascista e
em 1925 assina o Manifesto dos
intelectuais fascistas, já como Curzio Malaparte. Entretanto, vai
escrevendo e publicando. Viaja. Trava duelos. Conhece mulheres. Em 1931 publica
“Técnica do Golpe de Estado” (já lá vamos). Cai em desgraça junto do partido
fascista (as razões são várias) e é condenado ao desterro (curto) em Lipari,
passando por Ischia e Forte dei Marmi. Escreve contos, prosa de reflexão, escreve em jornais (às vezes à socapa), edita
revistas, eu sei lá que mais.
Pausa. Antes do isolamento cá do
burgo, a 8 de Março, lia no blogue “Tempo Contado”, de Rentes de Carvalho: Agora que o medo é tanto e tão espalhado,
procuro conforto na leitura de Malaparte, que tão bem soube descrever até que
fundo de nós mesmos o medo pode torturar. A imagem de uma das suas obras, “Kaputt”,
edição francesa, fazia as honras da casa. Procurei: as plataformas online de
vendas reconheciam o autor. Esgotado. Apenas disponível em edições inglesas,
espanholas, francesas. Todas as suas obras emblemáticas: A Pele, Kaputt, Malditos Toscanos, As Mulheres também perdem a guerra, O
sol é cego, Técnica do Golpe de Estado, entre outras. Tudo (ou quase) havia
sido publicado, noutro espaço-tempo, o dos anos 80 do século passado, em várias
editoras (Europa-América, Livros do Brasil e colecções com organizadores
livres), reflexo de uma época de grandes edições (as traduções são outra
conversa), agora apenas disponíveis em alfarrabistas e vendas de usados.
Existem muitos autores que definham no limbo dos usados. Eu tinha uma pulga
atrás da orelha e esta chamava-se Malaparte.
Dias depois, estava eu deitado a
ler “Trieste” de Daša Drndić quando, na página 31, esta faz uma referência ao signor Ugo Ojetti, com direito a uma
grande nota de rodapé. Escreve Daša Drndić que o fascismo atraiu um certo número de intelectuais italianos. Mais
tarde, escreve ainda Daša Drndić, viram a
luz e abandonaram o partido. Lá está Luigi Pirandello (prémio nobel da literatura)
e Curzio Malaparte. Em Março de 1925, no
Congresso dos Intelectuais Fascistas realizado em Bolonha, o seu Manifesto é
assinado por Curzio Malaparte, Tommaso Marinetti, Ugo Ojetti(…) entre
muitos outros, escreve Daša Drndić. Ainda não tinha chegado àquela parte do livro onde se lê: atrás de cada nome há uma história. (“Trieste”
também faz parte de uma história da decomposição, mas isso ficará para depois).
A pulga continuava a insinuar-se.
Arrumações: a sala requeria uma
barrela e assim foi. Ao abrir a caixa
de primeiros socorros (uma surpresa de aniversário, anos antes), onde
supostamente se guardariam elementos indispensáveis à sobrevivência, neste
caso, um kit com livros (depois também carregadores de telemóvel), tudo edições
Europa-América de bolso compradas em vários devaneios, feiras e arredores: por
exemplo, “Da Guerra”, de Carl Von Clausewitz, “O Zero e o Infinito”, de Arthur
Koestler e… “Técnica do Golpe de Estado”, de Curzio Malaparte, entre outros.
Curzio Malaparte está cá em casa desde 17 de Março de 2016, comprado algures,
perdido na caixa de primeiros socorros - abrir apenas em caso de emergência, possivelmente
em fila de espera de leituras que se acumulam, ou apenas aproveitamento de
espaço vital, não sei, não me recordo.
Edição de bolso de 1983,
devidamente enquadrada com uma introdução de Luigi Martellini, escudada numa
antologia crítica (Trotski, por exemplo), com uma nota bibliográfica de 6 páginas
(a quem este texto é devedor) e bibliografia, e ainda sobra espaço para a obra: “Técnica
do Golpe de estado”. A consequência disto tudo é a letra microscópica e um
constante focar, mesmo recorrendo a auxiliares preciosos como óculos. Esforço a que nos dedicamos
com algum prazer.
Já agora: em 1939 encontramos
Malaparte na África Oriental como enviado especial do Corriere della Sera; em 1940, o oficial Malaparte (re)começa a sua viagem pelas ruínas e pela morte (segunda
guerra mundial). Edita “O Volga nasce
Na Europa”, “O Sol é Cego” e “Kaputt”. Segundo Martellini, estas são as obras
que definitivamente cortam com o fascismo. Entre 1944 e 1945 terá solicitado a
adesão ao PCI (Partido Comunista Italiano). “A Pele” é editado em 1949 (com o
autor a residir em França): escandaloso, antipatriótico, imoral, blasfemo,
dizem. Em 1949 Malaparte trabalha (sozinho, é o que consta) em Il Cristo Proibito, rodado no ano seguinte na Toscânia. O filme é polémico e é premiado em Berlim. Escreve contos, teatro, poesia.
1956: a última aventura. Convidado a ir à Rússia visita igualmente a
China de Mao. Está doente. Tem um tumor incurável. Volta a Itália e agoniza
durante cem dias numa clínica da Roma. Parece que a sua cabeceira era muito
requisitada. A névoa pernoita perto de si. Muitas coisas saem dessa névoa.
Curzio Malaparte morre no dia 19 de Julho de 1957.
abril 04, 2020
abril 03, 2020
abril 02, 2020
Isolamento I (actualização)
De cabeça, sinónimos de parado, deixa ver: imóvel, inerte, estático, fixo, quieto, sei lá, estagnado, barrado,
bloqueado, descontinuado, detido, estacado, interrompido, paralisado, travado,
em suma… encostado.
(01-04-2020)
A condizer com o meio envolvente a obra (acima) deixou de
sair à rua. Não terá sido de um dia para o outro. Foi sorrateiramente, como
quem não quer a coisa. Até que parou. Temos seguido a sua curta história, como
se poderá ler aqui.
abril 01, 2020
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