janeiro 31, 2009

entardeço assim

Ao entardecer, debruçado pela janela,
E sabendo de soslaio que há campos em frente,
Leio até me arderem os olhos
O livro de Cesário Verde.

Que pena que tenho dele! Ele era um camponês
Que andava preso em liberdade pela cidade.
Mas o modo como olhava para as casas,
E o modo como reparava nas ruas,
E a maneira como dava pelas cousas,
É o de quem olha para árvores,
E de quem desce os olhos pela estrada por onde vai andando
E anda a reparar nas flores que há pelos campos...
Por isso ele tinha aquela grande tristeza
Que ele nunca disse bem que tinha,
Mas andava na cidade como quem anda no campo
E triste como esmagar flores em livros
E pôr plantas em jarros...

Alberto Caeiro, "O Guardador de Rebanhos", Poema III

janeiro 30, 2009

para um amigo

Violent Femmes, "Blister in the Sun"

que está algures na tropa e me emprestou uma vez uma cassete com isto (que eu conhecia bem e já não ouvia) e mais umas cenas que eu sempre carreguei na mochila juntamente com os livros e a banana e a maçã…

bom dia

Eu vi a luz em um país perdido. 
A minha alma é lânguida e inerme. 
Oh! Quem pudesse deslizar sem ruído! 
No chão sumir-se, como faz um verme...

Camilo Pessanha, "Inscrição" in "Clepsidra"

janeiro 29, 2009

conta-me histórias daquilo que eu não viiiii

Parece que o sr. Eng. mentiu. Mas, oh, a questão do prefácio é uma guerra civil de emoções. Na padaria não se fala de outra coisa a não ser da questão do “relatório” e do “prefácio”, mais a tal “ODCE” ou “CODE” ou “OCED”, não importa, o que importa é que toda a gente tem uma opinião formada, alicerçada em alguns segundos servidos juntamente com o prato do dia na TV. Consoante a cor política e as amizades coloridas esses 10 segundos são rapidamente digeridos, absorvidos e materializados num cantinho do cérebro junto da parte do “eu não ligo nada à política”, perto da “bola” e juntinho à “saúde e derivados”. Depois é só pedir um “pãozinho santo”, virar à direita ou à esquerda e ligar o lóbulo frontal “num” sei das quantas e já estamos na parte da climatologia meteorológica, com o prefácio nitidamente a ficar para trás. Certamente que “isto tá mal” mas lá vai dando para “quem quiser” trabalhar. Eu ouço isto há anos e anos, com ou sem a crise, com ou sem trabalho e sendo ou não tempo de quimeras democráticas. Aliás sobra a fatalidade: “A pobreza geral produz um aviltamento na dignidade. Todos vivem na dependência: nunca temos por isso a atitude da nossa consciência, temos a atitude do nosso interesse”, dizia o Eça nas Farpas (1871). Ora o Eça não parou até arranjar, ele próprio um tachinho de cônsul, mas podia ser outro qualquer desde que lhe desse para viver bem, comer à boa mesa de quem ele desprezava e observar o povo em socas, avinhado: a pobreza geral. Dava-se pois ao enlevo é o que é. Muito typical, diga-se. Ainda. 

janeiro 27, 2009

oh!, não é o Eça…nem o Flaubert

O De Niro aqui é inútil 

(…) no catecismo das virtudes e dos méritos do homem civilizado ocidental, se inclui a capacidade histórica, que é quase a principal, de adquirir capitais. Mas o russo não só é incapaz de adquirir capitais, como os esbanja em vão de um modo indecoroso. No entanto para nós russos, o dinheiro também é necessário e por isso gostamos muito e estamos sequiosos por tais meios, como por exemplo a roleta, que nos permitem enriquecer de repente, em duas horas, sem trabalhar. Isso cativa-nos muito; e como jogamos de qualquer maneira, sem objectivo nem esforço, perdemos”
Dostoiévsky, “O Jogador”

Para a coisa ser mais quentinha à portuguesa, podemos substituir a roleta pela lotaria ou actualizar para o euromilhões, e depois acrescentar a Nossa Senhora, em qualquer das versões disponíveis. 
Acresce, sem mudar muito de assunto, que os falsos moralismos só nos trazem amarguras. Fala-se dessa tal de promiscuidade (muito em voga) dos políticos com as empresas, municípios com a bola, tios e primos, cunhados e afilhados, tudo ao monte, como se fosse coisa nova, tratando-se do assunto com a roupagem do “lado actual da barricada”. Se conhecerem um pouco de história e recuarem, por exemplo, até ao séc. XIX (onde vivo actualmente), para não ir mais longe, já está lá tudo, sem o telemóvel e o Magalhães, sem o frigorífico e a fruta, é certo, mas com o mesmo ar avinhado em compadrio. É um lastro. Chama-se normalidade. 

janeiro 25, 2009

para além disso estava frio e o quarto vestia um papel de parede encarnado como nos filmes do Lynch

“Ainda pensei que o velho tivesse a alma do crime”. Sim, foi isso que ele disse. Perguntei “alma do crime?..”. “Sim, e a voz atrás do cigarro, claro”.  

Conversas surrealistas com Alfredo.

janeiro 20, 2009

vertigens inúteis


Na padaria o Sr. Custódio (das ferragens), portista solarengo que a ele “já ninguém apanha nos estádios à noite”, explicava entre sandes de presunto e Sagres mini, a “estratégia “ do Sr. Eng. para este ano de eleições. O seu interlocutor, completamente senil pelo consumo exacerbado de Martini com cerveja, João Asinhas, julgava que a conversa ainda estava na terça-feira anterior, depois daquela roubalheira na Luz ao Braga, roubalheira que ele, cerimoniosamente, não admitia, entre vários encolher de ombros. O Sr. Custódio, indiferente, continuava resoluto: “à direita, já se sabe está tudo morto…e bem morto, nada com que se ralar. Guina à esquerda, vai daí, o cabrão, e nós que andamos nos setentas a segurar as coisas”. O Asinhas, a despeito do 7º Martini, continuava numa luta sem quartel com uma sandes de fiambre e queijo, sem hora para terminar. Chegou o Copinhos e eu refugiei-me no final do balcão, a dar para as traseiras da gordinha que sempre me espanta com aquele sorriso de pingue para rojões. O Custódio continuava enlevado e já em pleno parlamento, simulando nos gestos e no trato (numa mescla oscilando entre o serralheiro e Armani), o deputado que tinha na cabeça: “virou-se, pimba, à esquerda lá com a tal de moção ou o caralho, para calar o Alegrete, e agora com esta cena do casamento entre panisgas, fazendo a corte aos gajos do bloco”... Nisto, o Copinhos pegou-se com o Asinhas sobre um jogo entre Sporting/Porto, ou o contrário, nos oitentas e a Sãozinha clamava vergonha entre homens feitos. A gordinha arrepiou-se com a entrada do filho do Alfaiate Valadas, rapaz de ginásios e peito revestido a fios de ouro e prata. Aproveitei para sair de fininho e sentei-me na praceta antiga. “Porque será que agora não se projectam praças?”, perguntei-me. Sem saber porquê o meu pensamento resvalou para toda esta loucura do mundo de hoje e acabei imaginando Antonin Artaud, ele próprio um suicidado da sociedade, como o seu Van Gogh, sentado ao meu lado com o bastão de S. Patrick que ele afirmava ter descoberto. Apeteceu-me reler o seu “Héliogabale ou l'anarchiste couronné”. Levantei-me e principiei a caminhar na esperança, ou talvez não, de sentir atrás de mim, como Artaud um dia na sua Marselha natal, a alma do rufia a rasgar-se.

janeiro 17, 2009

a clara concordância de uma ilha

Dizia o Alfredo para os seus botões (ruidosos), alheado da realidade, e valorizando o desconhecimento do mundo como uma das belas artes, que trinta e sete invernos bastam para renunciar à análise custo/beneficio da concretização plena de uma vida. Depois, ou já antes, os botões ter-se-ão recusado a desmistificar a conjuntura actual perante cenários ímpares, ou mesmo pares, atestando um desdém enorme pela crise, entre outras coisas, não gerando, dessa forma, força suficiente para uma comemoração, a qual, dir-se-ia, extemporânea. Ia-me matando (nas questões de fundo). E noutras, claramente. Apenas retorqui, não sei bem se para os botões dele se para os meus que se tratava de o sentimento de um acidental… 

New Order, "Ceremony"

janeiro 14, 2009

às vezes não sou eu


É preciso saber o que é ser israelita (judeu, árabe) em Israel. E palestiniano, sim palestiniano, no mesmo lugar e arrabaldes, delimitados a régua e esquadro pelas conveniências. Eu cá não sei. Se calhar nesta montanha de notícias ninguém sabe. E pouco importa. Isso é uma coisa, outra é a desproporcionalidade de meios e a hipocrisia que enlameia os fins. Apesar disso adapto-me à morte como se carregasse um dicionário enciclopédico a tiracolo e consta-me que na Somália (a Etiópia está agora de saída depois de, sem se rir, alegadamente ter arrumado a casa) terão (lá está a merda da estatística) morrido (aproximadamente?) 17.000 pessoas, nas últimas brincadeiras (2 anos), mas já ninguém recorda o assuntinho. E sobre o Zimbabwe fazemos as contas amanhã. Parece que há mortos e mortos e locais mais ou menos aprazíveis e cinematográficos para morrer. 
Entretanto, depois da ronaldisse e dos caminhos gelados, entretém-nos o sr. Oliveira e Costa, de saída daquela pantomina no palco da assembleia da república. A imprensa em terreiro já encontrou um seu conhecido(?) que o definiu como frio e… calculista (apostamos). Antes da lareira se recusar, o sr. D. José Policarpo esfregou (parece) uma lâmpada mágica, mas enfim já não temos o sonho das mil e uma noites. Mais tarde, no porcalhoto ou planeta futebol, dou por mim a receber em bom som o Paulinho a dizer à comunidade: “Olha, toca largo. Pautas de música. Toca e anda-me caçar”.

janeiro 13, 2009

dizem que é sobre como espatifar ferraris, corações e secretos de porco

Após uma bolonhesa de fazer inveja aos nossos cozinheiros emigrados na Suiça, por exemplo em Zurique, que conhecem duas palavras de italiano, acompanhada de um carrascão de Murça, seguiu-se-lhe um café acervejado no planeta bola arroupado de campeonato de sueca para surdos. Cheguei a casa exausto pelas reflexões mais profundas e liguei a TV. “A coxa é uma parte importante” afirma a Fatinha às 23h.30m e o sr. Campos, tacticamente falando, acrescenta uma tal de “riqueza enorme” e algum centro sem queimar uma substituição e mais “magia” e “fantasia”…e depois as mulheres que “não percebem” e a bola, segundo a dona Fátima “parece uma parte do corpo dele” (refere-se aos tomates presumo?), e as outras linhas…não obstante…diz o sr. secretário de estado que Ronaldo é “também um homem de família”, ao que Artur Agostinho completamente lúcido acrescenta que “é um homem de família”. Para mim, disse de mansinho, é apenas um jogador do caralho e dá-se o caso de ser cá do burgo e formado na academia do melhor clube do mundo. Vai daí mudei de canal.

janeiro 12, 2009

a propósito

quanto a calinadas e afins, não é apenas na nossa padaria que “a gente não estamos habituados”. Não bastando ao ministério da (des)educação, mais os seus algozes da DREN, seu braço armado, cuja desventura nos legou aquela massa informe e acéfala personalizada na sra. Margarida Moreira a espreitar em cada canto um incauto, acenando-lhe com a devida acção disciplinar, ainda assim, nos brinda com a mão singela da pena mais obtusa. Sem mais, segue um tal de (extracto apenas) documento oficial:
O pagamento dos Magalhães, nos casos em que a isso os pais sejam obrigados, estão a receber informação por sms devendo, em todas, constar a entidade 11023.
Como? Mais aqui e aqui.

como se diz na padaria “a gente não estamos habituados”

No final, sem delongas, a planície gelada portuguesa resume-se toda num pormenor tenebroso, um pequeno esquecimento: providenciar apenas que um limpa-neve em pleno Inverno e com alertas coloridos estivesse carregado de…gasóleo. Aconteceu em Vila Real. São pormenores com séculos de experiência acumulada.

janeiro 09, 2009

é mais ou menos a história do macaco e da mãe….

Conversava à saída da padaria sobre esses milhões de euros necessários, segundo o sr. Eng. (nas palavras do sr. João que havia lido algures sobre o assunto), para estimular a banca. O Alfredo parou e disse: “estimular a banca? Ora essa, que bata uma segóvia!” E continuamos rua fora, a falar já não recordo bem de quê.

janeiro 08, 2009

Os meus livros (que não sabem que existo) 
São uma parte de mim, como este rosto 
De têmporas e olhos já cinzentos 
Que em vão vou procurando nos espelhos 
E que percorro com a minha mão côncava. 
Não sem alguma lógica amargura 
Entendo que as palavras essenciais, 
As que me exprimem, estarão nessas folhas 
Que não sabem quem sou, não nas que escrevo. 
Mais vale assim. As vozes desses mortos 
Dir-me-ão para sempre. 

Jorge Luis Borges, "Os meus Livros" in "A Rosa Profunda"

janeiro 07, 2009

governantes precisam-se: assunto sério

Com algum atraso confesso que não vi na totalidade nem a entrevista com o Sr. Eng. nem depois o programa da Sra. (roliça e anafada) Fátima. Do segundo guardei a imagem do Sr. Silva, fiel jardineiro do Sr. Eng. e de um outro Sr., este último sentado, politólogo ao que julgo, e que foi o único a dizer qualquer coisa sem patacoada seguidista ou o seu contrário, sendo logo silenciado que ali não se estava para cogitar.
Enganam-se os que julgam que o Sr. Eng. vive numa pantomina de socas calçado. O Sr. Eng. dentro das suas possibilidades, já que vive num casulo politico/partidário desde sempre (nunca fez nada na vida a não ser aquelas obras de arte que conhecemos), sem confundir com paisagem ideológica, conhece bem a realidade (oh se conhece). Ele sabe o que se passa. Talvez não a realidade crua de todos os dias mas pelo menos a realidade macro, que nos pastoreia. O homem gere bem os tempos e as transições defesa ataque. É um homem da moda, do mundo asséptico e branquinho, das corridinhas e da paranóia da aparência. Paralelamente é um homem vazio, desbotado e desinteressante. De passagem, governa. Enganam-se os que o vêem (apenas) como subproduto do marketing, ou o marketing em si mesmo. Está bem. Mas é menos, é apenas mais um dos treteiros de calçada, um “não é mas podia ter sido” ou “parece que foi”. E assim se vendem os Jerónimos e a Torre dos Clérigos. Assim se remata um novo penteado para a nação no Natal e depois se abre seriamente um postigo à recessão. Devagarinho. Entrementes, o Sr. Magalhães quase não chega à escola e tem que apanhar um táxi para o centro de saúde mais próximo a 30 km. Neva e o sr. Magalhães, produto típico português, diz-se, tem frio. Às cavalitas do sonho, um povo com nome de cavalo (ou será o contrário?) joga no loto e reza à nossa senhora, com o Eça a definhar a cada página numa nova Leiria sem amores. Além um padre joga ao fisco com o patrão da têxtil e calçado. Este último considera-se já um “roto”. É o próprio quem o diz mas na realidade sempre o disse. Aquém, o João Gonçalves e o Maradona entretêm a plebe com uma disputa sobre esquerda e direita, esquecendo-se dos manetas, dos acéfalos e dos politicamente analfabetos funcionais. Não vivemos uma ficção nem sequer uma realidade. Será um conto dos Grimm, ou assunto sério? Alvíssaras para quem tiver informações.