Quando começará a corrida ao papel higiénico?
Vivo abancado como um anjo no barbeiro. Rimbaud
Acordei, bebi água, e voltei aos
lençóis. Dei uma vista de olhos aos jornais e enfiei de golada três “Águas-
Fortes Portenhas” de Roberto Arlt. O mata-bicho do dia. Na verdade, esta
história começa muitos anos antes, algures numa biblioteca.
Já não sei em qual foi: Barcelos,
Braga? Conheci Roberto Arlt na estante correspondente à América do
Sul, prateleira da Argentina. Ali estava ele, completamente desconhecido,
solitário, a caminhar desesperadamente pelas ruas de Buenos Aires. Mas isso eu
não sabia ainda. Encontrei os “Os sete loucos” por acaso, edição da Cavalo de
Ferro, na capa um homem segurava uma rosa com a boca. Gostei da capa e li freneticamente o livro. Pesquisei. Não encontrei mais nada editado em português
de Roberto Arlt. A vida continuou algures entre estantes, o tédio, e o
ganha-pão necessário.
Acabou por sair uma nova edição
da Cavalo de Ferro. Roberto Arlt passou a ser da casa. Entretanto saíram
“Escritor fracassado e outros contos”, pela Snob, e “Águas-Fortes Portenhas”
(Editora Exclamação) que vou consumindo aos tragos para não emborcar tudo de uma
vez. São crónicas ou “notas” pintadas à
mão enquanto Arlt vagueava por Buenos Aires, escritor caminhante, ou
caminhante escritor, não se sabe bem.
Se pesquisarem no google e se lerem o posfácio desta edição encontram Arlt nascido em 1900 e falecido em 1942. A crer em Alberto Caeiro uma biografia só tem duas datas: o nascimento e a morte. Entre uma e outra todos os dias foram de Roberto Arlt. A nós resta-nos o prazer de os tentar vislumbrar.
Tornou-se um costume cool usar
máscara nas ruas de Braga. Não é de agora. Imagino que em outras geografias o
mesmo se verifique. São as mesmas pessoas que enfartam os centros comercias e
outras grandes superfícies de distribuição, acotovelando-se, ora em corredores
de parafusos, ora em galerias de cuecas de gola alta, não respeitando
distâncias, mesmo as socialmente aceitáveis antes da coisa, resmungando
ultrajes causados pela demora que as disposições impõem nas linhas de caixa. A
imbecilidade é um bem de primeira necessidade, e os paradoxos que a definem não
estão ainda ao alcance de um ser humano normal.
Não se inquietem: as apps fazem parte das nossas vidas.
Descarregar a nova app stayaway covid
(que original - soa a Allgarve) controleira, é um afago carinhosamente
descarregado (um milhão já o fez sem necessidade de cassetete). Não que a levem
a sério, terá o mesmo destino das máscaras reutilizadas semanas a fio, com o
nariz ao léu, ou desfeitas em fanecos que adornam os rostos como peneiras. A
aparência é uma religião. Faz pandã com as modas e com o medo.
A imbecilidade escorre lá de cima
(deixem passar) e gosta de viajar para o lado. É como as nossas vidas
suspensas: lateralizam-se, futebolisticamente falando, mas não avançam.
Dizem-nos o que comer e beber, são padroeiros da nossa saúde, definem regras de
leitura, perseguem a pirisca, que se amanhe o piropo (os trolhas ficam com as vistas afectadas, deixai-os com os nudes e os vídeos do tik tok), o mundo avança com as
proteínas disponíveis e a delação, com ou sem máscara, segue o seu curso.
A app é apenas mais troço desse caminho. Não se trata apenas de controlo, as pessoas já escancaram a sua vida nas redes, ou por uns tostões em passerelles televisivas; a questão é de princípio, inconstitucional até à medula, relacionada com as liberdades fundamentais, um dos pilares do Estado de Direito. Não importa se uma larga maioria a aceita placidamente, ainda que, sem grande convicção. A partir daí o céu é o limite:
Álvaro de Campos nasceu em Tavira no dia 15 de Outubro de1890.
Ah! Ser indiferente!
É do alto do poder da sua indiferença
Que os chefes dos chefes dominam o mundo.
Ser alheio até a si mesmo!
É do alto do sentir desse alheamento
Que os mestres dos santos dominam o mundo.
Ser esquecido de que se existe!
É do alto do pensar desse esquecer
Que os deuses dos deuses dominam o mundo.
(Não ouvi o que dizias...
ouvi só a musica, e nem a essa ouvi...
Tocavas e falavas ao mesmo tempo?
Sim, creio que tocavas e falavas ao mesmo tempo...
Com quem?
Com alguém em quem tudo acabava no dormir do mundo...
Álvaro de Campos, "Ah! Ser indiferente!"
O Cristiano tem a coisa. Pasmo? Afinal
a coisa tem uma relação de proximidade com a humanidade em geral. Mesmo a
humanidade atlética e com algumas posses. Os especialistas dividem-se
relativamente à coisa. Os políticos, consoante a geografia, também. A coisa segue
o seu curso com determinação e algum enfado próprio das coisas. A sua invisibilidade é apenas
aparente: vive no olhar de muitos de nós. Entre outras coisas, gostamos de ser
pastoreados. Cada grilheta a seu dono.