fevereiro 26, 2019

Dignos de um eufemismo



Escrevo isto (para seguir a rotina do Cão) mentalmente. Lafargue está no século XIX bem aconchegadinho. A França vai muito atrás (diz ele) e não a reboque (ele fala de diferenças) da visionária Inglaterra. Ainda acredita nas máquinas e na mecânica de um pensamento que submerge a dor num caldo que, mais tarde (ou mais cedo) se denominará de bem comum. Não percebe a dinâmica predadora do capitalismo, nem o seu refúgio sincero nos céus plúmbeos do progresso. O progresso encontra aqui (aí) a sua verdadeira voz, derramada em torrenciais (e inacessíveis) demandas da filosofia antiga, sem compreender a razão de tanta loucura. O “vício do trabalho"(palavras de Lafargue), as horas intermináveis de trabalho, o caldo frio da fome, não são, não eram, um ponto de partida discutível, mas o veículo, melhor, os carris, que ditar(i)am o (supostamente) direito ao trabalho, esse caminho que desaguou na insanidade que hoje vivemos. A contradição nunca é paradoxal por aqui. No seu (presume-se) comunismo, socialismo, sei lá, os operários continuam a ser operários, continuam operários, obreiros de um futuro cujo direito à preguiça lhes daria um  complemento suplementar (que passe a ironia da redundância). Chegariam, como chegaram, aos dias de hoje, dignos de um eufemismo: colaboradores (e consumidores). Com toda a justiça, diga-se…

fevereiro 25, 2019

O direito à preguiça


Em regime de preguiça, para matar o tempo que nos mata segundo a segundo, haverá permanentemente espectáculos teatrais; é um trabalho muito adequado aos nosso burgueses legisladores. Organizar-se-ão em bandos que correm as feiras e as aldeias, dando representações legislativas. 

fevereiro 15, 2019

Hollywood Palace


De forma que, muito antes de Estalinegrado ter tido lugar, antes de ter sido delineado o plano da operação Barbarossa, antes que o tenham pesado e decidido; antes da campanha de França, antes mesmo de os alemães se terem lembrado de a levar a cabo, a guerra já ali estava, na estanteria do espectáculo. 

fevereiro 10, 2019

O Vollmann, eu, o Gabriel, e outras cenas literárias (II)


(continuação daqui)

Sabática nem vê-la. Fui ao fundo do fundo buscar coragem e acabei por arranjar um manual indicado para a leitura (deixem passar) de grandes calhamaços, enquanto providenciamos pães de ração através da força do nosso trabalho. Numa dessas noites, após a dose de cervejas diária, sonhei com Paul Lafargue (meu deus, em vez de sonhar com ninfas de dentes afiados) e o seu “O direito à preguiça”, acordei todo suado e com o cérebro a indicar-me variadíssimas direções. Todas elas indefinidas. Não se pode confiar no nosso próprio (deixem passar) cérebro. Apenas nesse momento, antes do pequeno-almoço, percebi que ao ler um manual para a leitura de grandes calhamaços, passam a ser dois livros em vez de um que temos de ler. Fiquei todo contente com esta minha ideia que era ao mesmo tempo uma evidencia e deixei o manual para trás, não sei bem onde. Consegui finalmente começar a ler o Central Europa, uma edição de apenas quinhentos exemplares, um quilograma e picos de livro, mais de novecentas páginas (dados do Gabriel), dois pares de óculos, alguns livros de reserva para o caso da coisa correr mal, uma enciclopédia para embelezar o quadro e algumas rações de combate, providenciadas pela força do meu trabalho que continuei a realizar sem qualquer tipo de alegria e com o Lafargue à perna. Todos os dias ia para o trabalho com esta imagem de fundo:

Imagem relacionada

e esta:

Europe Central

Depois de uma grande dor nas costas, doze dores nos olhos (não consecutivas), e uma sensação de estranheza na clavícula (porquê?), lá fui ler outra vez. Um mês (ou quase) entre despertadores, dores, almoços, lanches, centenas de cervejas e duas (pelo menos) derrotas do Sporting, acho. Sempre a trabalhar e a ler quando podia. Quando acabei senti-me possuído por uma grande tristeza, uma daquelas tristezas que experimentava quando era pequeno e uma novela acabava, ou uma coleção de cromos do Sandokan acabava, uma sensação de vazio acompanhada de um uuf, que mais ou menos se poderá traduzir por: finalmente.


Eu já volto com a análise técnico táctica da obra Central Europa, de William T. Vollmann. Obrigado.


fevereiro 09, 2019

O Vollmann, eu, o Gabriel, e outras cenas literárias

O Gabriel tinha-me falado do Vollmann. O Gabriel tinha escrito sobre o Vollmann, mais do que uma vez, acho, embora eu já o tivesse encontrado aqui e ali, ou por acolá, não sei bem, não sei se já leram Sebald?, pois o Sebald está na ordem do dia de Vuillard, eu disse isso ao Gabriel, lembro-me bem, disse-lhe vai mas é ler a ordem do dia, e já agora apanhas o Sebald no Livrarias do coiso, a sua voz rouca de pequenos nadas até está no Vollmann, a espaços, bem entendido, mas está lá, já agora  – disse-lhe –, o Vollmann e o Kis estão sempre presentes no Livrarias do coiso. A sério? Sério. O coiso, quer dizer, o Carrión é um intelectual que apanha a liana que está mais à mão, sociologicamente criativo, dá-se bem com a industria cultural e coiso, mas faz boas listas, levantamentos, recorda-nos cenas, aponta campos, têm de existir gajos assim viajados para que um gajo esteja mais descansado em casa.

Mas… sim, claro, o Vollmann e tal, solicitei à entidade patronal uma sabática, sei lá, tipo residência artística, ou bolsa literária, mas para ler, ler o Central Europa, que diabo, o Vollmann teve direito a isso, esteve por Berlim, por exemplo, a expensas não sei de quem a trabalhar, diz ele, quer dizer, a ler e a ver cenas para o livro com uma cambada de tipos e tipas em rede, que aquilo é um trapézio colocado a uma altura considerável. E o peso, o peso, leva-nos a espinha a momentos de desordem, momentos que nos levam (deixem passar) a sobrevoar o século XX de cadeirinha no antigo teatro Gil Vicente de Barcelos, agora – dizem-me – remodelado. Para não me perder vou agora fazer uma pausa. Já volto...