novembro 26, 2012

Do centro do desespero

«No entanto, a tristeza da vida quotidiana é o estribo graças ao qual o surrealismo galga os grandes corcéis do sonho. Ela não desempenha o papel de cravelho para a evasão e o mistério, como asseguram alguns pensadores estalinistas. Muito pelo contrário, é o centro do desespero donde toda a esperança renasce, mas pelo caminho tortuoso da cultura.»

“História desenvolta do Surrealismo”, Jules-Françoies Dupuis. Tradução de Torcato Sepúlveda. Antígona. 

novembro 22, 2012

Carta da semana: da nossa rua vê-se o mar



Companheiro de luta Passos Coelho: não se inquiete. Olhe, nós aqui em baixo tudo bem. Começámos, seguindo o seu avisado conselho, a cavar um túnel, mas depois disseram-nos que cavando para Leste, quando muito, dávamos com os cornos em Espanha, não sendo um problema de vento ou de casório, essa solução não nos serve de muito, pois não? Para Oeste? Boa ideia, seguindo a cepa antepassada, mas não temos graveto para barcos e já ninguém dá boleia a ninguém, ainda ponderámos a solução do chileno Super Rato dos Detectives Selvagens do Bolaño e entrar à socapa num cargueiro em Matosinhos, mas somos muitos sabe, mais que as mães, no máximo temos alguns conhecimentos na Apúlia, mas aí os barcos são muito pequenos e há sargaço até dar com um pau dos grandes. Ficámos. Na nossa rua, um dos dois fantasmas da frente esquerda deixou crescer a barba, cada vez nos aparecem menos, se calhar ficam por detrás das cortinas a ver a banda passar e a polir as correntes. Os da frente esquerda baixo, esses, ninguém lhes põe a vista em cima, tornaram-se transparentes, diz-se, após uma formação que fizeram, deixando ali o carro estacionado o tempo todo, à espera que o banco nacional contra os depósitos vazios dos carros lhe dê uma piedosa mão. A Farrusca aparece pouco, a de cima refunde-se, conforme convém, e ficamos a saber que a outra anda assim porque toma os remédios com cerveja. Os diospiros agora são gourmet, cada um vale um cheque compras no valor de um pastel de chaves, ainda por cima com uma cor deslavada de quem anda mal do fígado. É ir às promoções, não é meu caro? Ou juntar dinheiro e comprar um manual de construção naval. Mas não se inquiete, cá por baixo tudo bem.

novembro 20, 2012

Olha, ficamos a saber que:





Já os portugueses (segundo dados de 2008) são “mais felizes aos 66 anos”. Em 2012, não arriscaríamos qualquer idade para o efeito. Com licença. 


[imagem do filme: 2001: Uma Odisseia no Espaço, de Kubrick]

novembro 16, 2012

A nossa rua dava um filme



Companheira de luta Jonet: não se inquiete. Olhe, tá a ver, os nossos vizinhos do lado ainda fazem almoçaradas aos domingos, a familória toda, imagine, chegam e estacionam os carros, não está a ver a frota, uns atrás dos outros, adolescentes e tudo. A coisa dura que dura, às vezes um dia inteiro, não é difícil imaginar a chispalhada, os panadinhos, o rancho para aquela gente toda. Mas isso vai acabar, tá a ver, não tarda. A vizinha Farrusca este ano ainda não trouxe as tangerinas, de diospiros nem vê-los, agora até lhe deu para pintar ela o portão, metade verde, a outra metade esverdeada, aos setenta anos e com bom corpo para trabalhar e ainda se dá a ares, a solteirona, num sobe e desce que cansa, e diz que chega ao dia quinze sem cheta de reforma, um balúrdio de pra aí trezentos euros. A lá de cima, essa é que se queixa, vive de alugueres e de remorsos, acumula reformas coitadita, e lá vai inventando umas obras para ter os homes por perto, já se vê, deu-lhe as cruzes e sem dinheiros para ares, lá vai tomando os que pode, e escutando o que não deve. Os dinheiros, esses, rumina-os o colchão. Do Manso ali da frente diz-se que passou o diabo a quatro depois de amassado, uns anitos em França, quatro palavras novas, umas quantas moradias na rua, as outras na aldeia, vários muretes musgados e duas mudas de roupa, todas iguais. Casa de banho apenas no exterior, a atender nas mijas que vai dando nos arbustos, em competição privada com os gatos. Às vezes permite-se um outro passeio nos transportes públicos, com passe de reformado, que a vidinha está cara. Está, mas não para ele, nem para si, companheira de luta Jonet. Pois não?

[lata]

novembro 13, 2012

As minhas cassetes 95: Velvet Underground



You know her life was saved by rock 'n' roll 
Despite all the amputations you know you could just go out
And dance to the rock 'n' roll station (...)

 “Rock & Roll”, in Loaded (1970). Velvet Underground.

novembro 11, 2012

“O círculo dentro do qual os homens se agitam alargou-se insensivelmente”


Vivemos numa época em que o defeito dos governos consiste em terem feito mais o Homem para a Sociedade que a Sociedade para o Homem. Existe um eterno combate entre o indivíduo e o sistema que pretende explorá-lo e que ele trata de explorar em seu proveito; ao passo que, dantes, o homem, realmente mais livre, se mostrava mais generoso para com a coisa pública.

“O padre de Tours”, Balzac (1832). Tradução de Pedro Tamen. Relógio D’Água

novembro 08, 2012

O Tio está de volta: é fabuloso

(GP produções)

O Tio foi em viagem, o Tio anda em viagem, o tio flana por aí, e está de volta aos treinos. Ora, “eu não sou eu nem sou o outro, / sou qualquer coisa de intermédio”, roubando as palavras a Mário de Sá-Carneiro, sem dúvida “pilar da ponte de tédio / Que vai de mim para o Outro”, mas pode não ser bem assim. De qualquer modo, podem seguir o Outro AQUI. Ou então apanhá-lo na barra lateral deste albergue inútil: está lá em cima algures. 

novembro 07, 2012

Ora diga lá isso outra vez




Através da cortesia da amizade, tivemos acesso a esta missiva da FCT (Fundação para a Ciência e Tecnologia), baseada num despacho da Secretária de Estado da Ciência. O assunto em causa (segundo se depreende), genericamente, a acumulação de bolsas com trabalho remunerado, não será aqui alvo de apurada análise, o que ressalta é o texto. Todo um tratado de linguagem e soberba burocrática, de vazio institucional, na mais fina tradição do armanço obtuso do direito lusitano. Um exemplo de clareza:


Vimos pelo presente meio informar V. Exas. que, relativamente à questão em assunto, E NA SEQUÊNCIA DO DECRETO-LEI N.º 233/2012, PUBLICADO NA ÚLTIMA SEGUNDA-FEIRA EM DIÁRIO DA REPÚBLICA, foi nesta data proferido o Despacho que de seguida se transcreve, o qual será publicado em Diário da República:

DESPACHO

"Considerando que o Decreto-lei nº 233/2012, de 29 de Outubro, diferiu o efeito das alterações introduzidas ao Estatuto do Bolseiro de Investigação pelo Decreto-lei nº 202/2012, de 27 de Agosto, no que toca ao reforço do regime de dedicação exclusiva, passando a referida alteração a produzir os seus efeitos apenas no início do próximo ano letivo (2013-2014);
Considerando que o nº 3 do artigo 22º do Regulamento de Bolsas de Investigação da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P. publicado pelo Regulamento nº 234/2012, na 2ª Série do Diário da República, nº 121, de 25 de Junho, limita os termos em que se admite compatibilizar a garantia de exequibilidade do plano de trabalhos aprovado com outras actividades compatíveis com o regime de dedicação exclusiva, estando por isso mesmo materialmente ligado com as normas cuja eficácia foi agora diferida;
Considerando que o referido Regulamento foi, nos termos da lei, objeto de homologação por Sua Exa. a Senhora Secretária de Estado da Ciência;
Dando cumprimento ao despacho de Sua Exa. a Senhora Secretária de Estado da Ciência, datado de 29 de Outubro de 2012, o Conselho Diretivo da FCT, I.P. determina a suspensão imediata da aplicação do disposto no nº 3 do artigo 22º do Regulamento de Bolsas de Investigação da FCT, I.P.
Lisboa, 29 de outubro de 2012

novembro 04, 2012

Afinidades íntimas


«Salvo nas severas páginas da história, os factos memoráveis prescindem de frases memoráveis. Um homem a ponto de morrer tenta evocar uma gravura vislumbrada na infância, os soldados que estão para travar batalha falam da lama ou do sargento. A nossa situação era única e, francamente, não estávamos preparados. Falámos, fatalmente, de letras; receio não ter dito outras coisas além das que costumo dizer aos jornalistas. O meu alter ego acreditava na invenção ou descoberta de novas metáforas; eu, nas que correspondem a afinidades íntimas e notórias e que a nossa imaginação já aceitou. A velhice dos homens e o ocaso, os sonhos e a vida, o correr do tempo e da água.»

“O Outro”, in O Livro de Areia (obras completas, III), J.L. Borges. Tradução de António Sabler. Teorema. 

novembro 01, 2012

O culto dos mortos



«Dizia-se no séc. XVIII: nada de cidades com cemitérios. Dir-se-á no fim do séc. XIX: sem cemitérios não há cidades. Entre as duas atitudes há toda a distância do horror dos mortos conjurado e duma religião nova inventada no intervalo, a nossa, tal como reina nos nossos cemitérios de hoje, para onde arrasta as multidões de Novembro e os piedosos visitantes de luto do dia-a-dia.»

“Sobre a História da Morte no Ocidente desde a Idade Média” (pp.132), Philippe Ariès. Tradução de Pedro Jordão. Teorema.