março 30, 2012

Fale-me um pouco de si, Monsieur Auguste Dupin

“Coincidências dez vezes mais notáveis do que esta (a entrega do dinheiro e o assassínio cometido três dias depois na pessoa da proprietária) apresentam-se a qualquer hora da nossa vida sem atrair a nossa atenção, um minuto sequer. Em geral, as coincidências são enormes escolhos no caminho daqueles pobres pensadores mal educados que não sabem a primeira palavra da teoria das probabilidades, teoria à qual o saber humano deve as suas conquistas mais gloriosas e as suas descobertas mais belas”.

“Os crimes da rua morgue”, Edgar Allan Poe. 
 Guimarães Editores. Tradução de João Costa 


mistérios

março 24, 2012

Ver passar o mundo

Temos projectos. E os dias passam, dias a dias, e os jornais acumulando-se ali, no pó. Pó um dia seremos; talvez por isso as alergias, toda a semântica religiosa, ou a viciosa do mundo dos tóxicos. Gosto de ler jornais antigos, gosto de jornais velhos (quase tanto como gosto de livros), isso pouco importa na terra das notícias a granel, fastidiosas e televisivas. Pouco importa a minha anacronia. Já é Primavera a roupagem actual do Verão, mas não se vêem as abelhas em lado nenhum, fazendo-nos pensar que algo terá mudado, não existindo mais um tempo certo para as coisas, estações, ou pequenos apeadeiros, para vermos passar o mundo.

março 23, 2012

Antes ainda do relâmpago que interpunha “distâncias azuis entre os blocos das montanhas de nuvens”


“A chuva fazia funcionar nos canais a breve engrenagem das rãs, mas o homem de acção, abrandado pela inquietação como se lhe tivessem enfraquecido os ossos e não conseguisse levantar-se, «eu, homem de acção – dizia a si mesmo – permaneço aqui, aqui estou dentro do meu prazo mecânico, palpitando com outro tempo que não é o meu tempo e que me relaxa, diminuindo a precaução. Porque é indubitável que matar um homem é a mesma coisa que degolar um cordeiro, mas não é para os outros, e embora estejam distantes e a minha conduta seja para eles um mistério, este tempo anormal aproxima-os de mim e eu quase não consigo mexer-me, como se eles estivessem ali, na sombra, a espiar-me. Será o tempo de nervos que me inutiliza, ou o Astrólogo subconsciente que reserva as suas ideias e me deixa espremido como uma laranja para conceber pensamento que agora me fazem falta. Todavia, morto Barsut, a vida continuará, como se nada tivesse acontecido… e a verdade é que nada aconteceu se isto não for descoberto»”

“Os sete loucos” (pp.222), Roberto Arlt. Edição Cavalo de Ferro. Tradução de Rui Lagartinho e Sofia Castro Rodrigues.

loucos

março 22, 2012

março 21, 2012

Se o meu joelho não me engana

também é preciso ter estilo

Estes tipos ouviram umas 1500 vezes os Joy Division e umas 3.200 os New Order, e a páginas tantas começaram a ouvir (muito) os Smiths, e isto por mês. Por mês.
Um gajo quando os ouve a eles, é pá, está a ouvir (recorda imediatamente), como dizia um amigo, um saco de cenas, e tendo em conta que os tipos são imberbes até dar com um pau, isso é muito interessante, interessante mesmo. E depois neste vídeo aquele puto muito puto, o mais pequeno de todos (não, não é da banda), com as calças a regar milho, um tratado, dá vontade de ir lá para dentro fazer expressões esquisitas e assim. Todo um tratado.

Ontem o equinócio hoje é oficial


Época da rinoconjuntivite alérgica, a saudosa febre dos fenos. E a asma alérgica à espreita. Tudo de bom para vocês também.

março 20, 2012

A oeste nada de novo: os prós do contras


Diz que é uma espécie de debate grande: o programa da Dona Fátima. Bastam sete minutos por ano para percebermos que de grande apenas a sua duração e permanência. De resto, um retrato cruel da basbaquice (e do faz de conta) nacional. E, parece, um bom emprego. Ontem lá andava o Sr. Villaverde Cabral, noutra reencarnação sociólogo, agora apenas reformado de si mesmo. Parece que o dito até apreciava trabalhar aos Sábados, pelo sossego, claro. Um dos atributos da inteligência é o respeito, mas nada disso é para ali chamado.  

Amanhecer com as obras na vizinha


e desejar um bom dia?



cão

março 15, 2012

Meio caminho andado


imagem Anjo Inútil Produções

Liru e companhia

“Aqui, tudo se equivale, e a “esquerda” está para a direita como os parceiros de sexo nas trocas de casais de sábado à noite. A neutralidade pseudo científica é agora o “nec plus ultra” dos intelectuais-lulus que no regaço da grande burguesia ganem de volúpia a sonhar com uma sociedade sem conflitos, onde o mercado regule harmoniosamente a ordem colectiva e a vida social, espécie de capitalismo utópico que, através de “consensos”, neutralize os choques de interesses e expulse definitivamente a política.

Uma sociedade sem conflitos só pode ser uma sociedade totalitária, e já não restam dúvidas de que a utopia capitalista abre caminho a uma implacável ditadura: a do mercado. O que está em jogo é o fim de um período do capitalismo ligado de certo modo à emergência de uma sociedade pluralista. A gigantesca redistribuição dos mercados mundiais a que hoje se entregam os colossos do capital financeiro, a concentração em poucas mãos de quantidades de dinheiro astronómicas, significam o dobre de finados do pluralismo sob todas as sua formas."

[Publicado no Diário de Lisboa, de 19/6/1987]

“Ideias Lebres”, Ernesto Sampaio (Ed. Fenda)

Sacado daqui 

março 13, 2012

Inquietude


Erdosain era o vértice daquele triângulo formado pelos três homens sentados. O Rufia Melancólico e o Astrólogo entreolhavam-se de vez em quando. Haffner sacudia a cinza do cigarro e depois, com uma sobrancelha mais erguida que a outra, continuava a examinar Erdosain dos pés à cabeça. Por fim, acabou por fazer-lhe esta estranha pergunta:
 – E tinha alguma satisfação em roubar?...
 – Não, nenhuma…
 – Então porque é que anda com os botins rotos?
 – É que ganhava muito pouco.
 – Mas então o que roubava?
 – Nunca me ocorreu comprar botins com esse dinheiro.
E era verdade. O prazer que experimentou ao início por dispor impunemente do que não lhe pertencia depressa se evaporou. Um dia, Erdosain descobriu em si a inquietude que faz ver céus ensolarados como se fossem negros, cobertos por uma fuligem que só é visível para a alma triste
.”


“Os sete loucos” (pp. 35), Roberto Arlt.
Edição da Cavalo de Ferro. Tradução de Rui Lagartinho e Sofia Castro Rodrigues.

E o rapaz é a mulher de quem?

março 12, 2012

Manhã legível


Foi rápida a cena, sem passar na casa partida. Para correr ou caminhar apenas precisamos de uma coisa: pernas. Para que vos quero, ia eu já perto da padaria, atravessando um rumor lânguido, misturando chávenas, vozes e uma ou outra falcatrua de somenos. E o cabeçalho da manhã: sol eterno - “para aí uns 25 de máxima hoje menino. Sabe que Braga, ainda por cima, é um vale encaixado…” – e as 5 batatinhas do Sporting com “90% de trabalho e o resto…” de poesia. Já perto seria da hora dos martinis quando em voo raso aportei ao jardim das delícias. Em breve a rinoconjuntivite estaria de volta. E eu sabia-o.

março 07, 2012

Estava tão calmo como uma parede de adobe ao luar


Ela chegou ao cimo da escada e voltou-se para o motorista dizendo:
– Mr. Marlowe vai levar-me ao meu hotel, Amos. Obrigada por tudo. Telefono-lhe de manhã. 
– Sim, Mrs. Loring. Permite-me que faça uma pergunta a Mr. Marlowe?
– Certamente, Amos.
– «Fico velho… fico velho… enrolo as calças até ao joelho.» O que significa isto Mr. Marlowe?
– Absolutamente nada. Apenas soa bem.
Sorriu.
– É da
Canção de Amor de J. Alfred Prufrock. E agora outra. «Na sala as mulheres vêm e vão / Falando de Miguel Ângelo.» Isto sugere-lhe alguma coisa, senhor?
– Sugere, sugere. Sugere-me que o tipo não sabia nada acerca de mulheres.
– Precisamente o que eu sinto, senhor. E, não obstante, eu admiro muito T.S. Eliot.
– Você disse «não obstante?»
– Pois disse, Mr. Marlowe. Porquê? É incorrecto?
– Não, mas não diga isso em frente de um milionário. Podia pensar que você está a gozar com ele
.”

“O imenso adeus” (pp.343), Raymond Chandler. (Editorial Presença. Tradução de Carlos Grifo Babo)

março 06, 2012

Sítios onde nunca estive

Ei-lo que avança
De costas resguardadas pela minha esperança
Não sei quem é. Leva consigo,
Além de sob o braço o jornal,
A sedução de ser, seja quem for,
Aquele que não sou.
E vai não sei onde
Visitar não sei quem
Sinto saudades de alguém
Lido ou sonhado por mim
Em sítios onde nunca estive.

"Ah, poder ser tu, sendo eu!", Ruy Belo

março 02, 2012

"Fale-me um pouco de si, Mr. Marlowe. Isto se é que me permite pedir-lho."


" - Que género de coisas? Sou um investigador privado e já há uns bons anos. Sou um lobo solitário, nunca casei, aproximo-me da meia-idade e não sou rico. Já estive mais que uma vez na cadeia e não trabalho em casos de divórcio. Gosto de beber, de mulheres, de xadrez e mais umas quantas coisas. Os chuis não me vêem com muito bons olhos, mas há alguns com quem me vou dando. Sou natural daqui, nascido em Santa Rosa, os meus pais já morreram, não tenho irmão nem irmãs, e quando derem cabo de mim nalgum beco escuro, como acontece, como podia acontecer a qualquer um na minha actividade, bem como a muita gente em qualquer outra ou mesmo nenhuma, o que não é raro hoje em dia, ninguém irá sentir que a sua vida, dele ou dela, tenha perdido o sentido".

"O imenso adeus" (p.93) , Raymond Chandler. Editorial Presença. Tradução de Carlos Grifo Babo

Não sei porquê, mas passo a vida a deixar Mr. Marlowe apresentar-se. Coisa que ele faz com gosto em todos os livros, para além de resolver coisas que aparentemente já estariam resolvidas. Para Ricardo Piglia (“O último leitor”) este imenso adeus é talvez “o melhor romance policial que já se escreveu”, e ponto final, ou isso. Na capa acima, onde podemos observar uma moça a (dir-se-ia) pairar no espaço em soutien, lê-se que “Chandler não é só o melhor autor do policial negro protagonizado pelo detective privado, ele é um dos maiores escritores do século XX. Ponto final”. Depois de mais um ponto final, ficamos a saber que o dito saiu de um tal de Library Journal. Claro que a chatice disto se resume à capa com a moça, o dito, e o título com o ADEUS a dar com os lábios e supostamente a desintegrar-se (por ser no espaço?), tudo em fundo negro, tudo demasiado pindérico, a apelar à compra não se sabe bem por quem e de quê. Mas vá, sempre é uma nova (2008) edição/tradução. Preferindo capas bem mais interessantes, pois aqui ficam as da Colecção Vampiro-Livros do Brasil. A da direita da autoria de Cândido Costa Pinto. A tradução (diz que famosa) é de Mário Henrique Leiria.


As minhas cassestes 79: salvar o mundo não digo, mas torná-lo mais suportável…