setembro 25, 2020

Os mortos e suas crianças


Se eu fosse alguma coisa

não alguém

diria aos filhos de Édouard

providenciem

e se eles não providenciassem

eu iria para a floresta dos reis magos

sem galochas e sem ceroulas

como um eremita

e haveria certamente um grande animal

sem dentes

com plumas

e redondo como um vitelo

que viria uma noite devorar minhas orelhas

Então deus me diria

você é um santo entre os santos

leve este automóvel

O automóvel seria sensacional

oito cilindros e dois motores

e no centro uma bananeira

que camuflaria Adão e Eva

fazendo


mas isso será objeto de outro poema


(Benjamin Péret)

mas isso será objeto de outro poema*

Eles assustam, mentem, manipulam, às falsas esperanças seguem-se as ameaças a sério, as multas, e a promessa de que a desobediência se paga caro põe todos os narizes para o mesmo lado, o rebanho obediente caminha atrás de pastores que num mundo menos torto seriam levados  à forca. Grande bênção o coronavírus, que anuncia o admirável mundo novo. Reze-se um padre-nosso de graças a George Orwell, que deixou o aviso, mas nada adiantou, porque as ovelhas não vêem, não ouvem, não compreendem, são cegas, mansas, medrosas, gostam de obedecer e de cacete no lombo.

(*sacado a Benjamin Péret)

setembro 07, 2020

Só sei que tinha o poder duma criança*


Não temos memória. Ainda bem. Apenas saudade: das festas, do convívio entre cúmplices, do silêncio irmão de todas as coisas. Até do vazio. Saudades do vazio é a praia (deixem passar) da liberdade. Isto não tem nada de poético, apenas não se restringe (é uma recusa sólida) ao plano jurídico, político, médico ou social. Todos vamos morrer. E deveríamos começar por morrer uns com os outros, porque isso seria viver. Sobreviver, apenas sobreviver, é uma coisa que podemos facilmente aprender com os nossos antepassados. Mas para isso seria necessário conhecer o nosso país. Custa. Lá isso custa...

(*Ruy Belo)