julho 28, 2019

Coisas que se vão ouvindo por aí (III): ACTORS



Sei, um déjà vu vindo do baixo (apenas?) que nos aconchega, apesar de tudo. De qualquer forma we don't have to dance. Mas eu às vezes arrisco. Quem os quiser ver poderá ir a Leiria ao Extramuralhas deste ano. Dança quem quiser. 

julho 27, 2019

A marcha de Radetzky


A marcha ainda não acabou, tenho, aliás, uma tendência pueril para enconar quando gosto de alguma coisa, apreciar com deleite, não chegar ao fim. Ainda. Serve para muita coisa. Falar de obra-prima, neste caso, é uma redundância que não trairemos com análises supérfluas. Lê-se de um trago até que a tendência para enconar não nos deixe chegar ao fim. Até à página cento e noventa e cinco, por exemplo, é de um fôlego que se trata, entretanto, algumas descrições levam-nos para estruturas literárias muito próximas das corridas de fundo em atletismo, ou da vertigem dos asmáticos em várias situações nem sempre dignificantes. Já agora, sou asmático. Faltam cerca de cento e oitenta páginas. Com licença:

Naquela época, os costumes eram severos, como se sabe. Mas eles tinham as suas excepções e até as estimavam. Eram daqueles poucos princípios aristocráticos de acordo com os quais os simples cidadãos eram pessoas de segunda classe, mas um ou outro oficial da burguesia tornava-se ajudante-de-campo do Imperador; os judeus não podiam pretender ter  distinções, mas alguns judeus tornavam-se nobres eram amigos de arquiduques; as mulheres viviam segundo os códigos de uma moral tradicional, mas uma ou outra mulher podia amar como um oficial de cavalaria. Eram os princípios que hoje consideramos hipócritas, porque somos muito mais intransigentes; intransigentes, honestos e sem humor.  

julho 22, 2019

Coisas que sa vão ouvindo por aí (II): IDLES



Outro (hipotético) déjà vu que nos dá esperanças redobradas na humanidade que sobrevive nas ilhas Britânicas. Não há Brexit  que nos separe, ou melindre.

Coisas que vão ouvindo por aí: Torche



Tenho uma sensação violentamente agradável de déjà vu a ouvir isto. As minhas sensações de déjà vu são um constante déjà vu. Até já. 

julho 21, 2019

O senhor vem mesmo a calhar



O efeito bola de leve na leitura, para mais, conjugado com acasos mais ou menos alucinados, vertigens, espelhos, e por aí fora, não se sabe nunca como poderá acabar, se alguma vez acabar. Ler é estar permanente em contacto com o além, o além nós, algo suficientemente vago para nos levar no seu dorso, para nos fazer vogar mais ou menos sem destino, em todo o caso, estaremos na presença de um mundo ao qual seremos devedores, tanto como criadores.

Foi mais ou menos isso que aconteceu quando lia “Jakob Von Gunten” de Robert Walser: a páginas tantas, setenta e cinco, creio, Jacob divaga com a solenidade de um criador divino, se fosse rico e tal, sairia para o nevoeiro bafado da rua, onde o frio melancólico do inverno combinaria muito bem com as suas moedas de ouro, e tal, caminharia a pé, como sempre, gosto disso, pensando nisto e naquilo, bom, entretanto, encontraria um homem, observando-o com gentileza e percebendo (não se sabe bem como) que a vida lhe corre mal (uma espécie de sexto sentido?), um homem que, supostamente, teria uma dor profunda e que o confronta perguntando-lhe polidamente o que queria ele. Subitamente saberia quem aquele homem era, abriria a carteira, retiraria dez mil francos em notas de mil, quantia que daria a esse homem, continuando a sua viagem. Acrescentando mais à frente: e um dia iria mendigar, e o sol brilharia(...). Isto já na página setenta e seis, mas na anterior, na setenta e cinco, portanto, já o meu cérebro havia feito a ligação para Roth, Joseph Roth, e a sua “Lenda do Santo Bebedor”.


Neste último, logo a início, Andreas, um vagabundo, um bebedor, um autêntico bêbado, tem o maior piço da sua vida ao encontrar um senhor idoso bem vestido, ali junto às pontes sobre o Sena, onde era seu costume passar as noites. Ao senhor bem vestido coubera-lhe em sorte o milagre da conversão e decidira levar a vida entre os pobres. O encontro entre os dois é uma pequena obra-prima dentro da narrativa. Assim por alto:

- Aonde vai irmão? (…)
- Que eu saiba, não tenho nenhum irmão, e não sei aonde me conduz o caminho?
- Tentarei indicar-lhe o caminho (…) mas não fique aborrecido comigo se lhe pedir um favor invulgar.
- Estou preparado para qualquer serviço – respondeu o desamparado.
- Vejo, de facto, que tem alguns defeitos. Mas Deus pô-lo no meu caminho. Certamente precisa de dinheiro, não me leve a mal esta frase! Eu tenho dinheiro a mais. É capaz de me dizer com sinceridade quanto precisa? Pelo menos por agora?
(…)
- Vinte francos.
-  Isso é certamente demasiado pouco – replicou o senhor. O senhor precisa de duzentos.

O restante li de um trago. Outra vez. A lenda continua.


julho 10, 2019

Camisola às listas


Já fiz listas para tudo. Listar é estar vivo. Tudo bem. Mas interessam-me sobretudo as minhas listas. As listas são uma cena pessoal e intransmissível. É como tomar notas, mas com uma suposta hierarquia. Não gosto de hierarquias. Sou um ser contraditório, quase tanto como anacrónico, o que não abona nada sobre a minha presença na terra. Sobre o resto tenho dúvidas. Nem sempre claras.

Gostei desta imagem:

E cheguei a uma lista. Who cares?

Curriculum Vitae


Jacob von Gunten, abaixo assinado, filho de pais honrados, nascido em tal dia, criado em tal parte, entrou como aluno no Instituto Benjamenta para aí adquirir os parcos conhecimentos necessários para entrar ao serviço de alguém. Não tem da vida esperança alguma. Deseja ser tratado com severidade para assim aprender o significado do aprumo. Jacob von Gunten não promete muito, mas pensa saber comportar-se com honra e probidade. 

Boy Harsher — "Pain"

julho 05, 2019

Coisas muito pequenas e subalternas



Não sei se gosto de Robert Walser. Quando leio Robert Walser começo a minguar a cada palavra, acompanhando, suponho, a sua caligrafia minúscula (tenho informação privilegiada a este respeito), caligrafia essa que já induziria o caminho para o desaparecimento. Acho que foi Vila-Matas que se debruçou sobre isso correndo o risco de cair, não desaparecendo, mas ficando cada vez mais pequeno na queda até se confundir com a escrita de Walser. Walser internou-se voluntariamente numa casa psiquiátrica não para escrever mas para enlouquecer, ou desaparecer, tornando-se cada mais pequeno relativamente ao mundo, fazendo dessa forma, pandã com a sua caligrafia. 

Quando leio Robert Walser sou acolhido por um bidão de melancolia nada minúsculo… errado: sou sobrevoado por uma tristeza que no fundo é uma recusa (digo eu, para me proteger), ou apenas o mundo, o mundo celular transportado para um livro. O nosso mundo (há quem lhe chame qualquer coisa parecida com a realidade) também é isso. Não sei. "Jacob Von Gunten", por exemplo, começa assim:

Aprende-se muito pouco por aqui, há falta de professores, e nós, rapazes do Instituto Benjamenta, nunca seremos ninguém, por outras palavas, nas nossas vidas futuras seremos apenas coisas muito pequenas e subalternas.