O efeito bola de leve na leitura, para mais, conjugado com
acasos mais ou menos alucinados, vertigens, espelhos, e por aí fora, não se
sabe nunca como poderá acabar, se alguma vez acabar. Ler é estar permanente em
contacto com o além, o além nós, algo
suficientemente vago para nos levar no seu dorso, para nos fazer vogar mais ou
menos sem destino, em todo o caso, estaremos na presença de um mundo ao qual seremos
devedores, tanto como criadores.
Foi mais ou menos isso que aconteceu quando lia “Jakob Von Gunten” de Robert Walser: a páginas tantas, setenta e cinco, creio, Jacob
divaga com a solenidade de um criador divino, se fosse rico e tal, sairia para o nevoeiro bafado da rua,
onde o frio melancólico do inverno
combinaria muito bem com as suas moedas
de ouro, e tal, caminharia a pé, como sempre, gosto disso, pensando nisto e naquilo, bom, entretanto,
encontraria um homem, observando-o com gentileza e percebendo (não se sabe bem
como) que a vida lhe corre mal (uma espécie de sexto sentido?), um homem que, supostamente,
teria uma dor profunda e que o
confronta perguntando-lhe polidamente o que queria ele. Subitamente saberia
quem aquele homem era, abriria a carteira, retiraria dez mil francos em notas de mil,
quantia que daria a esse homem, continuando a sua viagem. Acrescentando mais à
frente: e um dia iria mendigar, e o sol brilharia(...). Isto já na página setenta e seis, mas na anterior, na setenta e cinco, portanto, já o meu cérebro
havia feito a ligação para Roth, Joseph Roth, e a sua “Lenda do Santo Bebedor”.
Neste último, logo a início, Andreas, um vagabundo, um bebedor, um autêntico bêbado, tem o
maior piço da sua vida ao encontrar um senhor idoso bem vestido, ali junto às
pontes sobre o Sena, onde era seu costume passar as noites. Ao senhor bem
vestido coubera-lhe em sorte o milagre da
conversão e decidira levar a vida
entre os pobres. O encontro entre os dois é uma pequena obra-prima dentro
da narrativa. Assim por alto:
- Aonde vai irmão? (…)
- Que eu saiba, não
tenho nenhum irmão, e não sei aonde me conduz o caminho?
- Tentarei indicar-lhe
o caminho (…) mas não fique aborrecido comigo se lhe pedir um favor invulgar.
- Estou preparado para
qualquer serviço – respondeu o desamparado.
- Vejo, de facto, que
tem alguns defeitos. Mas Deus pô-lo no meu caminho. Certamente precisa de
dinheiro, não me leve a mal esta frase! Eu tenho dinheiro a mais. É capaz de me
dizer com sinceridade quanto precisa? Pelo menos por agora?
(…)
- Vinte francos.
- Isso é certamente demasiado pouco – replicou o
senhor. O senhor precisa de duzentos.
O restante li de um trago. Outra vez. A lenda continua.
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