julho 21, 2019

O senhor vem mesmo a calhar



O efeito bola de leve na leitura, para mais, conjugado com acasos mais ou menos alucinados, vertigens, espelhos, e por aí fora, não se sabe nunca como poderá acabar, se alguma vez acabar. Ler é estar permanente em contacto com o além, o além nós, algo suficientemente vago para nos levar no seu dorso, para nos fazer vogar mais ou menos sem destino, em todo o caso, estaremos na presença de um mundo ao qual seremos devedores, tanto como criadores.

Foi mais ou menos isso que aconteceu quando lia “Jakob Von Gunten” de Robert Walser: a páginas tantas, setenta e cinco, creio, Jacob divaga com a solenidade de um criador divino, se fosse rico e tal, sairia para o nevoeiro bafado da rua, onde o frio melancólico do inverno combinaria muito bem com as suas moedas de ouro, e tal, caminharia a pé, como sempre, gosto disso, pensando nisto e naquilo, bom, entretanto, encontraria um homem, observando-o com gentileza e percebendo (não se sabe bem como) que a vida lhe corre mal (uma espécie de sexto sentido?), um homem que, supostamente, teria uma dor profunda e que o confronta perguntando-lhe polidamente o que queria ele. Subitamente saberia quem aquele homem era, abriria a carteira, retiraria dez mil francos em notas de mil, quantia que daria a esse homem, continuando a sua viagem. Acrescentando mais à frente: e um dia iria mendigar, e o sol brilharia(...). Isto já na página setenta e seis, mas na anterior, na setenta e cinco, portanto, já o meu cérebro havia feito a ligação para Roth, Joseph Roth, e a sua “Lenda do Santo Bebedor”.


Neste último, logo a início, Andreas, um vagabundo, um bebedor, um autêntico bêbado, tem o maior piço da sua vida ao encontrar um senhor idoso bem vestido, ali junto às pontes sobre o Sena, onde era seu costume passar as noites. Ao senhor bem vestido coubera-lhe em sorte o milagre da conversão e decidira levar a vida entre os pobres. O encontro entre os dois é uma pequena obra-prima dentro da narrativa. Assim por alto:

- Aonde vai irmão? (…)
- Que eu saiba, não tenho nenhum irmão, e não sei aonde me conduz o caminho?
- Tentarei indicar-lhe o caminho (…) mas não fique aborrecido comigo se lhe pedir um favor invulgar.
- Estou preparado para qualquer serviço – respondeu o desamparado.
- Vejo, de facto, que tem alguns defeitos. Mas Deus pô-lo no meu caminho. Certamente precisa de dinheiro, não me leve a mal esta frase! Eu tenho dinheiro a mais. É capaz de me dizer com sinceridade quanto precisa? Pelo menos por agora?
(…)
- Vinte francos.
-  Isso é certamente demasiado pouco – replicou o senhor. O senhor precisa de duzentos.

O restante li de um trago. Outra vez. A lenda continua.


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