Trieste: com imaginação e algum álcool à mistura, soaria, saído da
boca de um amigo açoriano, como triste.
A altas horas da noite, claro. A altas horas da noite da sua vida, Haya
Tedeschi espera. A sua história é pequena,
escreve Daša Drndić, uma das inumeráveis
histórias sobre encontros, sobre os vestígios preservados do contacto humano. Haya
vai retirando de um grande cesto vermelho pedaços da sua vida, e a história da
sua família agita-se em contacto com o ar (por vezes irrespirável) da sua
memória. Haya Tedeschi espera em Gorizia (ou Gorz - conforme nos deslocamos do
Império Habsburgo à Itália), localizada a noroeste de Trieste, junto à
fronteira com a Eslovénia. Esta zona é uma gamela (o uso desta palavra é
intencional) cultural em constante vaivém de impérios, fronteiras, guerras e
morte. Haya espera o seu filho. Sessenta e dois anos passaram.
Daša Drndić não aprecia
particularmente a expressão ficção
documental como classificação para o seu método de trabalho, ainda assim,
na página 417 (nota da autora e permissões) escreve: no espírito e na tradição estabelecida da ficção documental, integrei
as vozes de muitas figuras e palavras de muitos escritores ilustres. A sua
escrita é uma mistura de ficção e faction
(neste caso literature faction),
isto é, um texto sustentado em figuras e eventos históricos reais misturados
com ficção, socorrendo-se de fotografias, documentos, transcrições. Esta é uma história da decomposição que trespassa o século XX.
Como é que Haya conhece e se
enamora de Kurt Franz? Pois, na tabacaria onde trabalha. Franz tem 30 anos,
veste uniforme (já o imaginamos?), é vistoso,
alto e forte e, oh, gentil. A sua alcunha polaca é
“Lalka”, isto é, boneca. Franz é fotógrafo amador (parece que dos maus). Haya
passeia com Franz: encontra-se com ele sorrateiramente nos arredores de
Gorizia, vão a Trieste à ópera, ao cinema, sentam-se nas esplanadas. Kurt conta
bonitas histórias a Haya, o seu cão Barry, o seu trabalho na Polónia numa linda
floresta, perto de uma encantadora
estação ferroviária, onde havia um parque zoológico. Bons tempos.
À sua volta, além da guerra,
sucedem-se as viagens dos comboios de mercadorias com paragem em Triste e Gorizia
(durante a noite). É preciso ordem. Destino: Mauthausen, Dachau, Treblinka,
Auschwitz. Os nomes de cerca de nove mil
judeus que foram deportados de Itália, ou mortos em Itália, ou nos países que
Itália ocupou entre 1943 e 1945, constam deste livro (páginas 173 - 233).
(Nem seria necessário ir para longe: San Sabba também dava conta do recado). Existem
outras listas disponíveis, da Aktion T4 1943, por exemplo. Atrás de cada nome
há uma história.
Kurt Franz (assim por alto): SS- Untersturmführer, nasceu em 17 de
Janeiro de 1914, em Düsseldorf. Cozinheiro. Serve no exército de 1935 a 1937. Alista-se nas Waffen-SS, com o número
319 906. Inicia a carreira em fins de 1939 como cozinheiro no centro
de eutanásia de Grafeneck. E depois? Bom, Kurt Franz ainda trabalha como
cozinheiro em Buchenwald e em 1942 vai para Belzec e a seguir para Treblinka. Treblinka torna-se o seu reino. Depois
da revolta de agosto de 1943, torna-se comandante do campo. Em Treblinka pavoneia-se, cavalga, sai de manhã
para uma corrida, canta, canta, (…) mantém-se
em forma, cuida do seu belo corpo, e o seu fiel Barry está sempre atrás dele.
Gosta de flores. Antes de encerrar o
campo, Kurt Franz passa o tempo a matar pessoas. E depois? No final de 1943 Kurt Franz é transferido para Trieste,
onde conhece a judia Haya. E depois?...
Nota: “Trieste” é traduzido do inglês por António Pescada. “Trieste” é o título da edição inglesa. O título original da edição croata é Sonnenschein: uma palavra alemã que quer dizer luz do sol, segundo creio. Percebo que Trieste (um porto histórico atestado de estórias e mitos) como título seja muito estimulante. Não percebo a necessidade de os leitores portugueses lerem uma tradução da versão inglesa. Arriscar-me-ia dizendo que algo se perdeu?)
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