Curzio Malaparte parece um nome
saído de um Western Spaghetti. Curzio Malaparte é o pseudónimo de Kurt Erich
Suckert, nascido em Prato, Itália, a 9 de Junho de 1898, filho de Erwin
Suckert, de origem alemã. Malaparte foi quase tudo: teve uma educação
proletária (tinha sido confiado a uma família de operários), aderiu ao partido
republicano (do qual foi secretário), alistou-se (muito jovem) como voluntário
na Legião de Garibaldi, combatendo em França, na primeira Guerra Mundial. Com a
entrada da Itália na guerra alistou-se como voluntário, começando, aos
dezassete anos, a trepar na hierarquia, de soldado raso a comandante, gaseado
em Bligny, as sequelas pulmonares acompanhar-lhe-ão toda a vida. Volta a Itália
em 1921, após um périplo (vamos assim chamar-lhe) burocrático por vários
países, para trabalhar como jornalista e escritor. Adere ao partido fascista e
em 1925 assina o Manifesto dos
intelectuais fascistas, já como Curzio Malaparte. Entretanto, vai
escrevendo e publicando. Viaja. Trava duelos. Conhece mulheres. Em 1931 publica
“Técnica do Golpe de Estado” (já lá vamos). Cai em desgraça junto do partido
fascista (as razões são várias) e é condenado ao desterro (curto) em Lipari,
passando por Ischia e Forte dei Marmi. Escreve contos, prosa de reflexão, escreve em jornais (às vezes à socapa), edita
revistas, eu sei lá que mais.
Pausa. Antes do isolamento cá do
burgo, a 8 de Março, lia no blogue “Tempo Contado”, de Rentes de Carvalho: Agora que o medo é tanto e tão espalhado,
procuro conforto na leitura de Malaparte, que tão bem soube descrever até que
fundo de nós mesmos o medo pode torturar. A imagem de uma das suas obras, “Kaputt”,
edição francesa, fazia as honras da casa. Procurei: as plataformas online de
vendas reconheciam o autor. Esgotado. Apenas disponível em edições inglesas,
espanholas, francesas. Todas as suas obras emblemáticas: A Pele, Kaputt, Malditos Toscanos, As Mulheres também perdem a guerra, O
sol é cego, Técnica do Golpe de Estado, entre outras. Tudo (ou quase) havia
sido publicado, noutro espaço-tempo, o dos anos 80 do século passado, em várias
editoras (Europa-América, Livros do Brasil e colecções com organizadores
livres), reflexo de uma época de grandes edições (as traduções são outra
conversa), agora apenas disponíveis em alfarrabistas e vendas de usados.
Existem muitos autores que definham no limbo dos usados. Eu tinha uma pulga
atrás da orelha e esta chamava-se Malaparte.
Dias depois, estava eu deitado a
ler “Trieste” de Daša Drndić quando, na página 31, esta faz uma referência ao signor Ugo Ojetti, com direito a uma
grande nota de rodapé. Escreve Daša Drndić que o fascismo atraiu um certo número de intelectuais italianos. Mais
tarde, escreve ainda Daša Drndić, viram a
luz e abandonaram o partido. Lá está Luigi Pirandello (prémio nobel da literatura)
e Curzio Malaparte. Em Março de 1925, no
Congresso dos Intelectuais Fascistas realizado em Bolonha, o seu Manifesto é
assinado por Curzio Malaparte, Tommaso Marinetti, Ugo Ojetti(…) entre
muitos outros, escreve Daša Drndić. Ainda não tinha chegado àquela parte do livro onde se lê: atrás de cada nome há uma história. (“Trieste”
também faz parte de uma história da decomposição, mas isso ficará para depois).
A pulga continuava a insinuar-se.
Arrumações: a sala requeria uma
barrela e assim foi. Ao abrir a caixa
de primeiros socorros (uma surpresa de aniversário, anos antes), onde
supostamente se guardariam elementos indispensáveis à sobrevivência, neste
caso, um kit com livros (depois também carregadores de telemóvel), tudo edições
Europa-América de bolso compradas em vários devaneios, feiras e arredores: por
exemplo, “Da Guerra”, de Carl Von Clausewitz, “O Zero e o Infinito”, de Arthur
Koestler e… “Técnica do Golpe de Estado”, de Curzio Malaparte, entre outros.
Curzio Malaparte está cá em casa desde 17 de Março de 2016, comprado algures,
perdido na caixa de primeiros socorros - abrir apenas em caso de emergência, possivelmente
em fila de espera de leituras que se acumulam, ou apenas aproveitamento de
espaço vital, não sei, não me recordo.
Edição de bolso de 1983,
devidamente enquadrada com uma introdução de Luigi Martellini, escudada numa
antologia crítica (Trotski, por exemplo), com uma nota bibliográfica de 6 páginas
(a quem este texto é devedor) e bibliografia, e ainda sobra espaço para a obra: “Técnica
do Golpe de estado”. A consequência disto tudo é a letra microscópica e um
constante focar, mesmo recorrendo a auxiliares preciosos como óculos. Esforço a que nos dedicamos
com algum prazer.
Já agora: em 1939 encontramos
Malaparte na África Oriental como enviado especial do Corriere della Sera; em 1940, o oficial Malaparte (re)começa a sua viagem pelas ruínas e pela morte (segunda
guerra mundial). Edita “O Volga nasce
Na Europa”, “O Sol é Cego” e “Kaputt”. Segundo Martellini, estas são as obras
que definitivamente cortam com o fascismo. Entre 1944 e 1945 terá solicitado a
adesão ao PCI (Partido Comunista Italiano). “A Pele” é editado em 1949 (com o
autor a residir em França): escandaloso, antipatriótico, imoral, blasfemo,
dizem. Em 1949 Malaparte trabalha (sozinho, é o que consta) em Il Cristo Proibito, rodado no ano seguinte na Toscânia. O filme é polémico e é premiado em Berlim. Escreve contos, teatro, poesia.
1956: a última aventura. Convidado a ir à Rússia visita igualmente a
China de Mao. Está doente. Tem um tumor incurável. Volta a Itália e agoniza
durante cem dias numa clínica da Roma. Parece que a sua cabeceira era muito
requisitada. A névoa pernoita perto de si. Muitas coisas saem dessa névoa.
Curzio Malaparte morre no dia 19 de Julho de 1957.
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