dezembro 27, 2011

Perto de si


«- Um bom agente dos serviços de informação está perdido quando tem que intervir nalguma coisa que já aconteceu. A nossa profissão é fazer acontecer antecipadamente. Estamos a gastar não pouco dinheiro para organizar tumultos nos boulevards. Não é preciso muito, umas quantas dúzias de ex-detidos com alguns polícias à paisana, saqueiam-se três restaurantes e dois bordéis cantando a Marselhesa, incendeiam-se dois quiosques e, depois, chegam os nossos fardados e prendem-nos a todos, depois de uma simulação de luta corpo a corpo.
- E para que serve isso?
- Serve para manter no fio das preocupações os bons burgueses e convencer a todos de que são necessárias atitudes fortes. »


“ O Cemitério de Praga”, Umberto Eco (gradiva)
Tradução de Jorge Vaz de Carvalho


dezembro 22, 2011

No "suave odor arcaico dos molhes irlandeses"

Nunca, como naquele momento, lhe tinham assentado melhor os versos do poema «Dublinesca», porque, por arte e magia das circunstâncias, o seu breve passeio nocturno até ao pub estava a transformá-lo na velha puta da gabardina do fim do mundo, quer dizer, na inesperada reencarnação do último fulgor da desgraçada literatura e, ao mesmo tempo, num pobre velho acabado e morto de frio que caminhava por ruelas de estuque, onde a luz era de peltre e por onde passava ele próprio, o último editor literário da história, convertido no seu próprio funeral vivo”.


“Dublinesca”, Enrique Vila- Matas
Tradução de Jorge Fallorca


dezembro 20, 2011

Vá você senhor primeiro-ministro


E não se esqueça de levar os restantes membros do governo. Gente tão qualificada, certamente não terá dificuldades…

dezembro 19, 2011

Everyday is like sunday?

jantar gourmet de domingo

Um domingo pode ser todo um mundo: levantar-se enroscado na rosca e chá verde; limpar a casa [música altos berros], comer a sopa. Olhar lá para fora. Caminhar longe do centro comercial [comprar mantimentos]; sentir frio. Beber cerveja [Sporting]. Fazer um jantar delicadamente faustoso. Comer. Sentar-se ao lado disso tudo.

Escrever [segunda-feira] um domingo pode ser todo um mundo…

dezembro 08, 2011

Para quem ainda acredita no pai natal

"Max Schrems é um estudante de direito, austríaco, de 24 anos. Por curiosidade, fez o que a nenhum de nós ocorreu:quis saber que informações tinha a empresa Facebook sobre ele, mesmo depois de ter deixado de ser membro daquela rede social. Ou seja, depois de sair da rede, o que lá tinha ficado.

Os seus piores receios foram largamente ultrapassados pela realidade: estava lá tudo. Depois de muitas pressões e ameaças recebeu, talvez por desleixo, diretamente da Califórnia, um CD com toda as informações que a empresa mantinha: 1.200 páginas (quando impressas) de dados pessoais, divididos por 57 categorias, recolhidos ao longo dos três anos em que esteve na rede. Como o próprio recorda, nem a CIA ou o KGB alguma vez tiveram tanta informação sobre um cidadão comum".


Sacado daqui

Filme do dia (para a noite)

“Funny Games”, (1997), de Michael Haneke, com Susanne Lothar, Ulrich Mühe e Arno Frisch.


Ontem revimos o “Funny Games” original - não aqueloutro sucedâneo asséptico made in US, do mesmo realizador -, uma verdadeira lixa num estômago ulcerado. Ou, se quisemos entrar numa merda sociológica, talvez o abismo psicótico do tédio mais absoluto do mundo moderno.
Recordei-me quase logo, ou se calhar durante o sono, de uma deixa do Padre Brown (in "O Segredo de Flambeau" de Chesterton), que havia lido de tarde: “Podemos achar que um crime é horrível porque jamais o poderíamos ter cometido. Eu julgo-o horrível por saber que poderia tê-lo cometido”.

dezembro 05, 2011

Por acaso até era mesmo doutor



Morreu o Sr. Doutor Sócrates, um tipo que jogou naquela fabulosa selecção brasileira, a única que gostei, no mundial de 1982 na Espanha, ao lado do Zico, Júnior, Falcão e outros. Um tipo que foi um dos ideólogos do Corinthians democrático, o primeiro clube (e o único?) que realizou a autogestão participada, uma espécie de cooperativa onde todos tinham voz. E até ganhavam, os cabrões…

dezembro 04, 2011

Também andamos assim


“Lá fora, a tempestade chegara de uma assentada, como a noite em Coleridge, e tanto o jardim como o telhado de vidro se haviam escurecido com a chuva que caía. O Padre Brown parecia estudar mais o papel do que o cadáver; havia-o aproximado dos olhos; e parecia estar a tentar lê-lo à luz do crepúsculo. Depois ergueu-o contra a débil luz, e, enquanto o fazia, o relâmpago contemplou-os durante um instante tão branco que o papel pareceu preto em comparação.”

“A Forma Errada”, in “Os Melhores Contos do Padre Brown”, G.K. Chesterton .
 Edição Assírio&Alvim – Tradução de Jorge Pereirinha Pires.



“Chega-lhe à alma o desaparecimento dos autores literários. Comove-se sempre com essa realidade que a Rede anuncia para o futuro, cada vez com mais clareza".

“Dublinesca”, Enrique Vila-Matas. Edição Teorema – Tradução de Jorge Fallorca



Apontar é feio

novembro 27, 2011

O anúncio do fracasso tinha sido muito poético*

Cartoon  de Luís Afonso

Derivado ao muito trabalho desperdiçado em horas vagas, apenas hoje, enquanto desmantelo todo um sistema neuropsicomotor alicerçado num procedimento rotineiro que demorou dois anos a construir de raiz, apenas hoje, digo, estou em condições de analisar superficialmente o estado das coisas. A saber, para começar aquela notícia que passou ao lado da gaiola da luz: Portugal paga 34,4 mil milhões em juros à troika. Este valorzeco é para aí ou mais metade do empréstimo, depois de se pagar o valor total do empréstimo, claro. Um óptimo negócio, já se vê. Entretanto a Itália, por sorte, já se junta a este grupo avançado de caminheiros rumo ao abismo. Modernos, ainda assim não resistimos à devassa alheia por aí fora, mas em conformidade passam-nos ao lado cenas sem próximos capítulos dentro de casa, nunca se sabe. Por exemplo, da mesma forma que a cena da Grécia nunca cá arribaria, também esta cena da Grécia nunca cá vai arribar, pois não?: Surto de malária na Grécia sem risco de contágio a Portugal.


*Frase título retirada de "Milénio I. Rumo a Cabul" de M.V. Montalbàn

Ser sportinguista é meio caminho andado para um pacemaker...

novembro 20, 2011

Tudo bons rapazes



Como se diz na minha terra, faz-me espécie que a mesma gente que em qualquer questiúncula de trânsito apite, insulte, ameace e até se bata; a mesma que num qualquer jogo de bola (pode ser no café) se chateie, provoque, insulte e ameace e até se bata; ou aquela mesma que por assuntos de um murete ou um qualquer rego de água desate logo a puxar da caçadeira, e aqueloutra que sob um qualquer diz-se que improvise um arremesso de ácido sobre a putativa causa de embaraço; essa gente é a mesma que encara com bonomia budista a irremediável crise, as imprescindíveis medidas e a inevitável austeridade e miséria. Essa mesmíssima gente acolhe com um enfadado são todos iguais, os casos e as pessoas envolvidas nos BPN, BPP e nas sucatices, ou a pornográfica relação entre o poder e algumas empresas privadas com um entra e sai desmedido de um lugar para o outro sem qualquer pejo. A mesma gente que convive paredes meias, diariamente, com delações, favorecimentos, luvas, atropelos, abusos de poder e muito medo à mistura. E sobretudo, dando-se bem com o silêncio conveniente. A ágil dobragem de espinha.

Será quiçá a esses que o Sr. Alemão da troika Jürgen Kröger se refere como gente boa, eventual eufemismo para corno manso. Não sabemos se este senhor conduzirá o seu automóvel enquanto nos pastoreia, mas ainda vai muito a tempo de numa qualquer das nossas maravilhosas rotundas mudar de opinião.

novembro 13, 2011

Enquanto decorre o saque curiosas impressões na 1ª pessoa de alguns tipos não propriamente próximos

"O saque de Roma" pintura de Martin van Heemskerck (1527)
"Limitado como sou, só há pouco tempo me dei conta que todas as teorias e saberes académicos pouco ou nada interferem no processo de decisão, na prática de quem detém responsabilidades e muito menos na arte de manter o poder. Com ou sem socialismo, com ou sem liberalismo, com ou sem nacionalismo, os portugueses continuariam a ser irresponsáveis, corrompíveis, timoratos, gananciosos, nepotistas, fisiologistas, sem respeito pela lei, agarrados a pandilhas e lóbis para todos os gostos e oportunidades, avessos ao bem-comum, críticos cáusticos de toda e qualquer forma de autoridade, maledicentes, invejosos, ingratos, servis ou respondões. São traços de carácter colectivo, pelo que um golpe de Estado seria seguido de um novo regime salpicado de Varas, Loureiros, Sucateiros, Godinhos, Joaquins Pessoa, Pedros Soares, Duartes Limas, Felgueiras, Isaltinos".

Escreve o Sr. Combustões, um tipo para aí monárquico conservador a frio e a sério, muito próximo de histórias asiáticas – In Combustões

"A responsabilidade é sempre dos principais dirigentes, mas também é de todos. Nós temos uma maneira de estar que nos leva a estas situações. A pequena cunha, a pequena vigarice, a economia paralela. Como eu digo às vezes, isto já não é um país, isto é um lugar mal frequentado. Somos o que somos. Ainda sofremos as consequências da inquisição, que secou as elites em Portugal, e faltam-nos elites."

Diz em entrevista ao Jornal I (12-11-11) o improvável Vasco Lourenço, Militar de Abril, um tipo que alguns gostam de não gostar. Um tipo quase próximo – diz ele – de um Mário Soares mais antigo. 

"Fico muito irritado. Não Suporto o Portugal da moscambilha e da tranquibérnia. Videirinhos, patos bravos a enriquecer. Fulanos a falar engravatados na televisão que deviam estar na cadeia, muitos deles. Deve obrigar também a uma reflexão."

Diz-nos Mário de Carvalho em entrevista ao Jornal I (12-11-11), um tipo escritor que gosta de dizer palavras difíceis a jornalistas já de si pouco dados a literaturas e a escrevinhares, e nós levamos por tabela. Um tipo que estudou direito porque não tinha jeito para nada, e que talvez esteja próximo de alguma esquerda antiga não comprometida e por aí fora, quem sabe.

Caro Mário de Carvalho, moscambilha pode ser  por exemplo tramóia, e tranquibérnia, por exemplo, trampolinice ou falcatrua. Não havia necessidade. 


Hoje amanhecemos assim


                                       
                                             por acaso: RTP2 (12-11-11)

novembro 06, 2011

E portanto eu queria ser um

explorador indefinido de países improváveis(...)


in "Milénio I. Rumo a Cabul" - Manuel Vazquez Montalbàn

novembro 01, 2011

Coisas mesmo importantes

Feirense 0 - Sporting 2 (Estádio de Aveiro 30-10-11)

Parece que foi o Camus que um dia escreveu – e cito de cor – que apenas no teatro e no futebol, ao domingo à tarde, um tipo se sente verdadeiramente inocente. No teatro não digo nada. Quanto ao futebol raramente é ao domingo à tarde. A imagem em cima foi tirada num domingo à noite, pouco antes de uma ameaça de coçório perpetrada por uns elementos da força policial, desejosos de bater em algo e em força, embora tivessem esbarrado com uns gajos como nós, mais pacíficos que um coala, e guarnecidos de uma capacidade de diálogo muito superior ao Guterres. Ao intervalo lá descemos para junto da turva onde se está muito bem, e até se canta uma canção contra os jogos à segunda-feira e outros dias que tais e contra os rufiolas da SportTV – só nós sabemos porque não ficamos em casa.
“ Vai Reinaldo, dizia um gajo atrás e mim,  “vai Van Wincla” gritava outro, e eu pensava entre berros que tudo aquilo fazia sentido, e o que fazia falta era um sentido para a vida, e vai daí lembrei-me (mas isto tudo muito rápido) que o Julian Barnes, que gosta largo de futebol, tinha escrito no seu “Nada a Temer” que o Camus tinha dito que a “reacção adequada à falta de sentido da vida era inventar as regras de jogo, como fizéramos para o futebol”. Foda-se, esta merda anda mesmo toda ligada, pensei assustado…

outubro 23, 2011

Os 400 golpes mais 1



Os golpes acabaram por surpreender-me. Lá para o sexagésimo oitavo já estava por conta do bueiro. Até que ponto fabricamos as nossas memórias, não o sei dizer, mas tendo em conta que vi o filme nos idos noventa, igualmente na televisão, posso agora afirmar – não sem receio de represálias do meu cérebro – que dessa(s) vez(es) terei visto o filme sem olhos de ver, quer dizer, estando de olhos abertos e aparentemente observantes, estes não viam nadinha. E ainda agora acontece. Sustentado na arqueologia da memória, posso assegurar que naquela altura íamos a todas, o que nos facultou um arcabouço razoável para lambermos as feridas e experimentarmos tudo outra vez. Estava (ontem) a ver o filme e a pensar que “isto não tem nada que ver com belíssimo” - é muito mais do que isso - e que para além de uma câmara engenhosa e tecnicamente gandula, o substrato narrativo (que existe!) não se distancia do tempo/espaço em que ocorre. 
Estávamos em 1959, e recordei-me logo de uma frase do Pepe Carvalho (no Milénio I de Montalbán), aludindo ao ”envelhecimento da modernidade”, ou se quisermos, o envelhecimento precoce da modernidade. A coisa nasceu velha. De um capitalismo juncado (e fundado) em cadáveres, passamos - e estou agora claramente a extrapolar viajando no tempo- para um capitalismo juncado de dívidas e fundamentado nestas. Vítima alarve, dir-me-ão, mas não me comovo, sabendo que a estes políticos e dirigentes dá muito jeito a total ausência de memória, e um desconhecimento quase total do povo da (sua) história (para além de datas avulso e comemorações esvaziadas do seu sentido), reconhecendo-se, todavia, que aqueles políticos que constam da frase anterior também desconhecem a história e têm a memória mais curta que um peixe. Por isso dá jeito.  
Fazendo mais um link cerebral, manieto a letra do Cais dos GNR:

Se o mercado impera
Vais sempre longe demais…

Que querem, não estou inspirado…  

outubro 16, 2011

Vão para o diabo sem mim: o burro do povo


Parece que o leite achocolatado ficará taxado como até aqui. Vitória. Parece que o dito é um elemento fundamentalíssimo para o crescimento dos neófitos. Docinho.

Parece que há por aí muita gente surpreendida com algumas das medidas tomadas por este governo de santinhos trauliteiros (e intrujões). Pergunta-se em quem terão votado (quando se dignaram a ir votar) nos últimos 35 anos estes “surpreendidos”, “ultrajados”, “acampados” e “indignados”.

Eu confesso-me fodido. E burro: como a personagem – assim me pareceu- principal do filme de ontem na RTP2, ”Peregrinação Exemplar” do Bresson. Leio que lá mais para o fim da película (quando já cá por casa nos interrogávamos quem era o burro), o burro é salvo por um moleiro que acredita que ele é a reencarnação de um santo. Basicamente é esta a história do nosso país. E aposto que alguém virá para nos salvar

outubro 09, 2011

Envernizados pelas lagostas

Plano efémero de uma Instalação MM (praia de Ofir 08-10-11)


Uma vez passada a caixa dos “camemberts”
o escaravelhozinho perdeu-se no deserto
onde o presunto quase morreu de fome
Corre a um lado e outro
mas a um lado e outro só vê tomates caiados
Olha para cima e vê um cabide
a rir-se dele
Ó cabide envernizado pelas lagostas
tem piedade de um escaravelhozinho que deita a língua de fora
por não poder disparar sobre as meias
que dariam um tão bom jantar
Tem piedade de um escaravelhozinho que toca flauta
para tentar encantar-te
porque julgou que tu eras serpente
Porque não eras tu uma serpente de campainhas ou lunetazinhas
o escaravelhozinho teria roído a sua flauta
desesperado
não teria esperado a morte
atrás de uma gravata
E a morte não teria vindo
como um ancinho de cristal
e a morte não o teria apanhado
como se apanha uma "beata"

"NOITES DE INSÓNIA", Benjamin Péret, tradução Jorge de Sena (ASA)


Construção humana sintonizada com o espaço envolvente obedecendo a uma vertente prática perfeitamente inteligível (Ofir 08-10-11)

Patati patata e isto

"Dêem-nos uma televisão e um carro mas livrem-nos da liberdade".

In “MASCULINO FEMININO”, Realização de Jean-Luc Godard, 1966 (RTP2, 08-10-11)

outubro 03, 2011

Coisas do arco-da-velha


Peter Murphy (Bauhaus) , Hard Club, Porto 01-10-11 (cortesia anónima)

Aprender a envelhecer, sem cascos de carvalho.

E saber mais, apenas no Tio...

setembro 18, 2011

Por exemplo

"Montaigne acreditava que, já que não podemos derrotar a morte, a melhor forma de contra-ataque é tê-la constantemente em mente: pensar na morte sempre que o nosso cavalo cai ou cai uma telha dum telhado. Devíamos ter o sabor da morte na boa e o seu nome na língua. Antecipar a morte é soltarmo-nos da sua servidão; além disso, se ensinamos uma pessoa a morrer, ensinamo-la a viver.”

“Nada a Temer”, de Julian Barnes, Quetzal, Tradução de Helena Cardoso.

Julian Barnes, autor do genial “O Papagaio de Flaubert”, mereceria (temos quase a certeza) uma capa mais interessante para a versão portuguesa de “Nada a Temer”. Entre a aproximação xunga ao genério da série Sete Palmos, e as capas de livros de auto ajuda com as letrinhas em relevo e a arvorezinha num fundo cinza com sombreados, esta capa é menina para despertar em nós uma fúria raivosa capaz de decepar de um só golpe o frontão do moço que disserta ali perto sobre literatura, ou o caralho. Resta-nos a consolação de muita gentinha comprar isto ao engano.

setembro 04, 2011

Vão para o diabo sem mim - parte zero


Acordei a pensar nisto e não sei se compreendo.

Mas eu vi tudo: por obra de um espelho, a junção da liberdade com o multibanco. O hipermercado que precede(u) a betonização; o shopping que simula a rua e a praça, a calçada e o largo, e depois a vida. Do panadinho ao hambúrguer foi um ápice. Mas Fátima lá ficou.
Da longínqua Europa, começaram a vir charters de cheques em branco. Turistas very white vieram observar os nativos, e encheram alguns hotéis. Ninguém saberia dizer quem era essa tal de CEE, depois UE, mas agradecíamos a bandeja com os subsídios, empréstimos e graças, que o diga o pobretanas do Sr. Américo Amorim.
E tínhamos, claro que tínhamos, uma estratégia: manter a cancela semiaberta; o caciquismo; a roubalheira miudinha; mostrar obediência e fechar as portas a tudo que não fosse (supostamente) moderno; e claro, as auto-estradas. Os patrões compraram o seu Mercedes e arranjaram a sua amante. Os trabalhadores quiseram ser patrões. Eis tudo. Era óbvio que o têxtil tinha futuro e ao interior rapidamente se chegaria. Entretanto o povo começou a pedir emprestado para a casa, o carro e o aparador da sala. Os bancos, as agências de viagens e as capas da Sentinela e Despertai prometiam paraísos com leõezinhos a beijar gazelas e criancinhas a brincar com crocodilos delicados. Tudo isto servido com políticos semianalfabetos devidamente credenciados, capazes de assinar o seu nome e soletrar a palavra ECONOMIA, rodeados de seres humanos capazes de qualquer coisa para ficarem com uns restos. E longas filas de espera para isto tudo. Resta-nos pois o Euromilhões ou Nossa Senhora de Fátima.

agosto 27, 2011

21 gramas


"Estava frio dentro do quarto. Fechei outra vez a porta, limpei o puxador com o lenço e voltei para junto do totem. Ajoelhei-me e observei a superfície de pêlo alto da carpete que ia até à porta da entrada. Pareceu-me ver dois sulcos paralelos como se tivessem arrastado nessa direcção os calcanhares de alguém. Quem quer que tivesse arrastado o corpo estava determinado. Homens mortos pesam mais do que corações partidos.(....)"

Philip Marlowe in “À Beira do Abismo” de Raymond Chandler

Tradução de Carlo Magalhães

As minhas cassetes 73: Radiohead *



Parece que ontem estava por Coimbra em, digamos, 1995?...uma cena quase Fringe.

*Do álbum "The Bends"

julho 31, 2011

Paradoxalmente

Não prometemos nada, apenas trabalho. Com esta contradição à priori alinha-se todo um país em fileiras cuja tabuleta assinala:”a banhos”. Não iremos. Não iremos ao insuportável mundo dos areais, mas deixaremos um rasto de livros para que os bufos (hoje denominados de espiões) se comovam à nossa passagem.
Relativamente à tarefa, restava-nos talvez aferir que: “Enfrentar e retribuir o ódio podia ser um sentido da vida, um costume, ou gozo; quase tudo era preferível ao tecto de chapas esburacadas, às secretárias poeirentas e cambadas, às montanhas de pastas e arquivadores encostados às paredes, às ervas daninhas pungentes que cresciam enredadas nos ferros da janela panorâmica desguarnecida, à exasperante e histérica comédia de trabalho”(…).
Não contentes, estorvamos a farsa, por exemplo, vendo o “Gran Torino”, Directed by Clint Eastwood, ou com a emoção na corda bamba do séc. XIX, lendo que:” O aparecimento da vulgaridade costuma ser útil muitas vezes na vida: ela alivia as cordas demasiado tensas, atenua os sentimentos de presunção ou de falta de respeito próprio, lembrando-lhes o seu parentesco com eles(…)”. Não há nada de mal nas coisas truncadas. A própria realidade é hoje um autêntico inventário de acontecimentos truncados. Resta-nos um filtro, ou ir fumando e cuspindo os restos que se pegam aos lábios e língua.

A primeira citação, ou muleta truncada é pertença do Sr. Onetti. Juan Carlos Onetti era um jovem Uruguaio quando publicou “ O Estaleiro” em 1961, data em que, obviamente, Sofia Castro Rodrigues e Virgílio Tenreiro Viseu, não faziam a mínima ideia que iriam vertê-lo para a língua portuguesa 40 anos depois através de uma edição Ulisseia. Eu próprio não fazia a mínima ideia, claro está, que iria juntar todos estes trapinhos aqui.
Ali, a segunda truncadisse, sempre me pareceu uma ideia. Uma
Ideia é coisa muito séc. XIX. Pertenceu à pena de Ivan Turgéniev, em “Pais e Filhos”, páginas 118 e 119, da edição portuguesa dos Clássicos da Relógio de Água, traduzida (do Russo, pois) por António Pescada.

julho 23, 2011

Bússola Andress

Londres, Julho 2010

Há qualquer coisa de insidioso na rotina. O mesmo se passa na viagem. Talvez por isso ambas sejam tão necessárias. Pensava nisso agora enquanto começava a escrever algo, supostamente, acerca da linguagem, e de como esta serve como veículo de transmissão de falsificações, de criação de ilusões. Nas TVs da Europa, os movimentos tipo “indignados” surgem-nos como algo novo. Novo?, interrogo-me. Diferente? De que modo isso releva ou interessa ao outro lado, ao sistema capitalista? Existirá um outro lado, ou será apenas outra face da mesma moeda?

Recordo, por exemplo, um acampamento em Londres que observei em Julho de 2010, (uns meses antes dos acampamentos indignados - que merda de nome) ali bem no centro político da cidade. Não me recordo porém de o ver na TV, muito menos em Portugal. Foi-me confidenciado que era até um acontecimento banal, para aqueles lados, e permitido naquele lugar, portanto aceite, o que pode parecer estranho num país cheio de “proibido andar de skate nesta área”. Estranho? Talvez não.

Recentemente deparei-me com um “Bal Populaire”, ali para os lados de Montmartre, junto à estação de metro de Abbesses, organizado por uma tal de “Union des Etudiants Communistes”. A coisa era gratuit, e tinha supostamente uma costela de “solidarité avec les peples árabes!”, mas não se notava nada, quer dizer, a malta não estava a dizer palavras de ordem, nem sequer havia palanques ou discursos à volta da fogueira, nem assembleias, nem ponto do dia. E se calhar também não estavam assim tantos Árabes como isso. Simplesmente música ao vivo, rock, hip-hop, reggae - pareceu-me, e nada de especialmente recomendável; salsichas e uma cena qualquer de porco (porco e Árabes?) grelhada; bebidas alcoólicas (ui, os árabes), tipo cerveja choca, Ricard, vodka e até vinho tinto a copo. A fauna era variadíssima, entre pretos, brancos, árabes(?), alguns turistas, franciús, freaks, japoneses de câmara tudo menos oculta, e gajos que não se percebia muito bem o que eram, ou deixavam de ser. Se no primeiro dia ainda se viam uns tipos com autocolantes da UEC, no segundo dia nem isso. Não era encenado. Era quase só divertimento, aberto a toda a gente. Era barato. Ninguém chateava, mesmo quando alguém vociferava (quase murmurando): la decadence de la France. Podia-se até mijar no jardim minúsculo. Ou namorar. Ou mijar num café/brasserie próximo entre olhares cúmplices. Não, para além do gajo da decadance, não sei se estava muita gente indignada por ali. Mas aquilo pareceu-me livre, liberto, libertino. E isso é estar realmente do outro lado: talvez o pior que poderá acontecer ao sistema capitalista.


Place des Abesses, Montmartre, Paris, Julho 2011

julho 11, 2011

Às vezes dá-me pena. Tanta dureza, tanta fé, tão impassível ou inocente soberba, e os anos passam, inúteis.


in " O punhal", Jorge Luís Borges (Editorial Teorema)

junho 26, 2011

Pasmo mudo

Ontem: Noute. Quente, para não animar ninguém com vontade de “hostes”. E depois todo um programa semanal em que não participei, animei, ou sequer exclamei qualquer vontade, desígnio, ou empenho em verberar os hematomas de uma desgraça que, sendo alheia, é a própria, e a mais não serei obrigado. Posto isto, não reconheço a mudança.

Hoje, se calhar recordo que os “acontecimentos não aconteceram, estão à espera de acontecer no momento em que pensarmos neles”, relendo o “Austerlitz” de W.G. Sebald, e esperando subitamente melhores dias neste (outro) início de noite. Fui - evidentemente lá estive - à padaria, procurando a rosca e, ainda assim, na manhã quente desci e subi essa inclinada plataforma sem pensar em nada, atravessando um reservatório de calor e luz encoberto pelos muros e por um conjunto, segundo creio, de memórias, que me dificultaram, por momentos, atravessá-lo, sem que me detivesse por um momento. Chegado, recebi o chá numa ventura que encerrava trabalhos: carro; casa, livros; trabalho; discos…e um “pasmo mudo”?

junho 02, 2011

A minha flagrante incapacidade para aturar certas merdas: Parte II


isto é do Angeli

Na padaria arrisquei o pescoço com um papo-seco de água a 25 cêntimos o estouro. Mal cosido, entalou-se-me logo no gasganete à melhor de 4. Acrescentei o vício do tabaco, baratinho e pequeno, 3.50 Euros, num ruminar futuro de estacionar carros, saga infinita do tone da bomba, após um carregamento ínfimo no depósito, quase por aí a 1.4 a litrada, e já nem sorvi o jornaleco, nem fiquei para a final dos tremoços com finos a tiracolo. Cá fora, mas não muito, recebi um estalo da operadora dos sentidos, e o telemóvel foi logo desbaratado num sortido futuro com direito a ninfas e colóquios infinitos com o diabo. Tudo à borla durante uma semana, mediante um carregamento de mulheres virgens da polónia, via ryannar, sem passar no infortúnio de uma tarde de sábado na discoteca Tomadia, ali perto de Barcelos, onde passavam sempre os The Cure. Após 400 voltas na rotunda nova sem conseguir desmarcar-me para a saída nem tirar o pistolão mexicano, é já prestes e vomitar um rinoceronte de catarro, dei de caras com um sentido proibido novinho em folha e uns dizeres políticos, reconhecidos unanimemente como arte urbana. Acabei a almoçar num sítio que se via grego para nos explicar como pagar a conta, e com a Boémia 1835 a 1,20 a solha. Teso como um virote, acabei a tarde a trabalhar no local do costume, com cara de caso e uma fome catalisadora de experiências heterossexuais.

maio 11, 2011

A gaiola no carreiro


Enquanto não tomarem consciência não se revoltarão, e enquanto não se revoltarem não poderão tomar consciência.

"Mil Novecentos E Oitenta E Quatro", George Orwell

maio 01, 2011

Simplesmente inteligência


"Essa atracção devia-se muito mais à convicção secreta – ou talvez nem sequer fosse uma convicção, à mera esperança – de que a ortodoxia política de O’Brien não fosse perfeita. Pairava-lhe qualquer coisa no rosto que irresistivelmente o sugeria. E, pensando bem, talvez não fosse afinal a heterodoxia o que trazia inscrito no rosto, mas simplesmente inteligência."

“Mil Novecentos e Oitenta e Quatro”, George Orwell, Edição Antígona, Tradução de Ana Luísa Faria

abril 17, 2011

Eles andam aí

Braga, Avenida Central (Abril 2011)

"o filho-da-puta (mesmo quando ainda não o sabe) vive de um modo geral preocupado, vive tanto mais preocupado quanto mais filho-da-puta é, vive preocupado com as suas preocupações e com a despreocupação dos outros, vive em permanente inquietação mesmo quando aparenta calma, tudo o que é novo o perturba, é para ele causa de tormentos e temores (…).

De resto, o filho-da-puta gosta de falar de doenças, de assistir a desastres, de ver tristes ocorrências; o filho-da-puta sente-se confirmado sempre indirectamente, sempre na preocupação dos outros, ou no que ele julga ser a preocupação dos outros; por isso se alegra com a fraqueza alheia e ri das minorias, dos que são diferentes dele, ri porque tem a certeza de que é ele, filho-da-puta, que está certo, que sempre esteve e está certo."

“discurso sobre o filho-da-puta”, Alberto Pimenta, 7 nós, 6ª Edição (a 1ª edição remonta a 1977)

março 17, 2011

A minha flagrante incapacidade para aturar certas merdas: Parte I


A minha flagrante incapacidade para aturar certas merdas, não resulta de nenhum elemento fundamental exclusivo, nem enriquece os meus momentos de regalório privado um pouquinho que seja, mas como de um facto com “c” se trata, e ao qual não posso nem quero fugir, deverá ser abordado com alguma parcimónia. Em primeiro lugar o convívio politico que nos – salve seja – pastoreia, deriva directamente do povo que o serve, curvando a espinha e almejando-lhe o assento. Mais a mais, pela força do sistema de voto, confirma-se a fervência de um agrupamento cujas divergências não chegam sequer ao segundo prato. E logo aí tem-se a construção de todo um edifício.

Desse desatino, aparentemente camuflado, longas rapinagens nos infestam os dias, ali na TV e nos jornais, acolá, em cada centímetro de terra disponível para os seguidores do status quo, desde os coladores de cartazes, passando pelos informadores avulso de toda a verdade que afecta o grupo em questão - nós todos - não esquecendo aqueles que se marimbam por razões de hedonismo, e outros que emigram pelo cansaço e fundamentalmente pelo (suposto) devaneio da necessidade. Tudo mudo, dizem-nos, tudo para nosso bem, quase sem se rir, aborrecendo o seu pequeno cérebro de cachalotes de água doce, sem espermacete que nos ilumine a devassa. A páginas tantas a plebe julga-se presente, o que está provado, desde que seja em doses minúsculas nos seus delírios, e de preferência com benevolência de instâncias superiores acopladas aos seus gadgets, vulgo geringonças, repletos de amigos…

março 13, 2011

Rente ao fim:apesar da inutilidade da literatura

O invisível Sol parecia como esmagado por toda a parte, havendo apenas no lugar que ele ocupava verdadeiramente um extraordinário feixe de intensas espadas de fogo. O mundo parecia estar coroado pelo signo cintilante dos reis e das rainhas da Babilónia. O ar, concavo como um cadinho de ouro fundido, fervia luminosa e ardentemente.

“Moby Dick”, Herman Melville, edição Relógio de Água, Tradução de Alfredo Margarido e Daniel Gonçalves.

janeiro 28, 2011

E pensar nisto

Queimar livros e erigir fortificações é tarefa comum nos príncipes.

Jorge Luis Borges, "A muralha e os livros", Editorial Teorema.


janeiro 23, 2011

O blogue do Tio: Um espaço lateral que poderá ser central. Apenas não se sabe de quê.

O Tio Foi Em Viagem

A julgar pelas aparências, e tendo em conta informações que tomamos por fidedignas, “O Tio Foi em Viagem” empenha-se em mostrar(-nos) sítios, passagens - não confundir com paisagens - , desvios e lugares (é preciso cuidado com a palavra Lugar, já que esta toma sentidos terrivelmente técnicos em contexto geográfico, sendo pasto regular de doutoramentos em geografia(s) que podem ter designações esquisitas e que a maior parte dos seres humanos desconhece); mas também, segundo cremos, despenha-se a mostrar-nos outros coisas com gente lá dentro, ou por muito perto. A fasquia fotográfica adivinha-se, todavia, muito baixa (em qualidade). A reflexão, quando existente, longe de trivial, assoma-se individualista e egocêntrica, para não dizer balofa. Por lá andam tigres e morcegos. A cada passo, um tal de sujeito refresca-nos com livros e leituras camufladas de desdém. “É cá dos nossos” - pensareis, se aí chegardes.

janeiro 09, 2011

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Para mim a baleia branca é a parede que me cerca.

Capitão Ahad, in "Moby Dick", Herman Melville