janeiro 30, 2013

Carta da semana: o mercado das putas


(fotografia: GP)
[Braga - 2012]

Companheiro de luta Vítor Gaspar: não se inquiete. Folgamos saber que estamos de volta aos mercados, embora nós aqui em baixo, verdade seja dita, nunca deixamos de fazer uma perninha nos ditos para assegurar a paparoca, pese a nossa imperícia negocial na selva especulativa do bife e da faneca do dia-a-dia, não imagina, a dona Lurdinhas e o Sebento são uns demónios da fruta e dos vegetais perto do angelical Ricardo Salgado, cuja cabeça desmemoriada associada à sua vida agitada na demanda do pão, o terá levado a olvidar a declaração de míseros 8,5 milhões de euros ao fisco, é muita penca, muita sardinha, muita couve-galega por declarar. Mas não se inquiete, sabemos que solicitou mais tempo para nos poder enrabar com a delicadeza do sangue frio, que isto de se mercadejar com o corpo é coisa velha de anos, entrada nos tempos e com ramificações e devaneios em Bragança, Viseu e outras devassidões e, assim sendo, o senhor conseguiu tornar o nosso país num imenso red light district, uma longa faixa de meretrício, incorporando assim a nossa estratégia turística da perna aberta com a nossa enraizada tradição religiosa, alicerçada no ajoelhou tem de rezar e no afamado posicionamento de missionário. De resto, não fossem as provas resultantes dos testes com radiocarbono, familiarmente conhecido por Carbono-14, duvidaríamos que o senhor, e as restantes múmias que o rodeiam, alguma vez tivessem tido coluna vertebral, todavia, ainda é cedo, segundo a comunidade científica, para sabermos com exactidão, se estamos em presença de animais vertebrados, dotados – de forma inaudita que seja – de uma qualquer espécie de cérebro.

PS: companheiro de luta Gaspar, gostará de saber que na nossa rua compramos nos saldos lâmpadas de luz vermelha para juntar aos oleados, que isto de sermos empreendedores e startups não é tão complicado como dizem. A rua vai ficar linda.

[fotografia originalmente publicada no Tio anda em viagem]

janeiro 26, 2013

Não é a ortografia que faz o génio



Ludovico aproveitou esses longos momentos de lazer para recitar a Fabrício alguns dos seus sonetos. Os sentimentos eram bastante justos, mas como que enfraquecidos pela expressão, e não valiam o trabalho de ser escritos; o singular era que este ex-cocheiros tinha opiniões e maneiras de ver vivas e pitorescas; mas tornava-se frio e vulgar desde que se punha a escrever. «É o contrário do que vemos no mundo – pensou Fabrício – ; agora sabe-se exprimir tudo com elegância, mas os corações não têm nada para dizer.» Compreendeu que o maior prazer que podia das àqule criado fiel era corrigir os erros ortográficos dos sonetos.
  – Fazem pouco de mim quando mostro o meu caderno – dizia Ludovico –; mas se Vossa Excelência de dignasse ditar-me a ortografia das palavras letra por letra, os invejosos já só poderiam dizer: «Não é a ortografia que faz o génio.».

“A Cartuxa de Parma” (pp.212), Stendhal. Tradução de Adolfo Casais Monteiro. Relógio d’Água.

janeiro 21, 2013

Oh, fale-nos um pouco de si signori Fabrício



O príncipe eludia-se ao julgar Fabrício discípulo da tia; as pessoas de espirito que nascem no trono ou ao lado dele não tardam a perder toda a subtileza de tacto; proíbem, à sua volta, a liberdade de conversação, que se lhes afigura grosseria; não querem ver senão máscaras, e pretendem julgar a beleza da tez; o mais engraçado é julgarem-se cheios de tacto. Neste caso, por exemplo, Fabrício acreditava em quase tudo quanto lhe ouvimos dizer; é certo que não pensava duas vezes por mês em todos esses grandes princípios. Possuía gostos apurados, tinha espírito, mas não lhe faltava a fé.
O gosto da liberdade, a moda e o culto da "felicidade do maior número", de que o século XIX se apaixonou, não passavam a seus olhos duma heresia que há-de passar como as outras; mas ao cabo de matar muitas almas, tal como a peste mata muitos corpos enquanto reina numa região. E, apesar disso, lia deliciado os jornais franceses, e até cometia imprudências para os obter.

“A Cartuxa de Parma” (pp.150) , Stendhal. Tradução de Adolfo Casais Monteiro. Relógio d’Água.

[penguin]

janeiro 17, 2013

Mais um no lombo (III)


[calma, o sangue ainda não chegou ao rio...]

Mais um no lombo (II)



The old man's come to see
The way the land lies over
Come to see the way the clouds roll.
He wants to know if cowslips still grow
On the hill where he kissed his girl
And if the sky turns just the same
When the wind blows from the west
Above the old town in the distance
And the village in the field.

He wants to see the graveyard by the church
And watch the clock and see the boys
Throwing stones at the skylarks
Just the way they were.

The old man's come to see
The way the trees fall on the land with the sunset
And smell the grass as it blows through the fields.

The old man's come to see
The way the land lies beneath the sky.

He wants to know if the rain that falls is just the same
And the way the clouds stretch open
And hang there like a veil.

And the ocean to the north
It sings the same song and turns
From blue-grey into green.

The old man's come to see
The way the land lies beneath the sky
To watch the shadows of the clouds racing by.

"The way the land lies", And Also The Trees.

Mais um no lombo (I)



[papillon]

janeiro 15, 2013

A cartuxa de Parma começa assim (foda-se, é fabuloso!)



A 15 de Maio de 1796, o general Bonaparte entrou em Milão à frente daquele juvenil exército que acabava de passar a ponte de Lodi e mostrara ao mundo que, passados tantos séculos, César e Alexandre tinham um sucessor. Os milagres de audácia e de génio que a Itália presenciou no decorrer de alguns meses acordaram um povo adormecido; oito dias antes da chegada dos Franceses, os Milaneses ainda não viam neles senão um punhado de salteadores habituados a fugir das tropas de sua Majestade Imperial e Real; era, pelo menos, o que, três vezes por semana, lhes repetia um jornalinho do tamanho da palma da mão, impresso em papel sujo.

“A Cartuxa de Parma”, Stendhal. Tradução de Adolfo Casais Monteiro. Relógio d’Água.
Eu já volto…

[campagne de 1796]

janeiro 13, 2013

As cabecinhas pensadoras (algumas até com calos no cérebro e contas bancárias enrijadas)


Estes tipos têm todos visões sobre a industrialização (Público.pt) cá do burgo. Já se sabe que as visões são fodidas, principalmente neste deserto em que nos perdemos. Alguns destes visionários já participaram em várias quimeras governativas, sempre com esmero e retinta dedicação à gamela, alforrando-se a gosto. Outros espolinham-se por perto. Os resultados estão à vista. Garantem-no eles.   

Momento Parkinsons

janeiro 11, 2013

A pensar morreu um burro




Cavaco diz ao Constitucional que imposto sobre pensões mais altas é “exorbitante”.
O Presidente da República deixa mais afirmações do que perguntas, no pedido de fiscalização que entregou no Tribunal Constitucional. Cavaco sai sobretudo em defesa das pensões mais altas.


janeiro 10, 2013

Cativeiros



Penso num tigre. Esta penumbra exalta
A vasta biblioteca laboriosa
E parece afastar as prateleiras;
Forte, inocente, ensanguentado e novo,
Irá pela sua selva e pela manhã
E marcará seu rasto na lodosa
Margem de um rio cujo nome ignora
(Não há passado nem porvir, nem nomes
No seu mundo, só um instante certo)
E salvará as bárbaras distâncias,
Farejando no entrelaçado labirinto
Entre os odores o odor da alba
E o odor deleitoso do veado.
Por entre as riscas do bambu decifro
Suas riscas, pressinto a ossatura
Debaixo da pele esplêndida que vibra.
Interpõe-se em vão todos os mares
Convexos e os desertos do planeta;
Desta casa de um tão remoto porto
Da América do Sul, te sigo e sonho,
Ó tigre que é das margens do rio Ganges.

Na minha alma escorre a tarde e penso
Que o tigre vocativo do meu verso
É um tigre de símbolos e sombras,
Uma série de tropos literários
E de memórias da enciclopédia,
Não o tigre fatal, a aziaga jóia
Que, sob o sol ou a diversa lua,
Vai cumprindo em Samatra ou em Bengala
A rotina do amor, do ócio da morte.
Ao simbólico tigre eu quis opor
O verdadeiro, o de cálido sangue,
O que dizima a multidão dos búfalos
E hoje, 3 de Agosto de 59,
Alarga na planície uma pausada
Sombra, mas já o facto de o dizer
E de conjecturar-lhe a circunstância
Fá-lo ficção da arte e não criatura
Vivente dessas que andam pela terra.

Procuraremos um terceiro tigre.
Será, tal como os outros, uma forma
Do meu sonho, um sistema de palavras
Humanas, não o tigre vertebrado
Que, para além das vãs mitologias,
Pisa a terra. Bem sei, mas qualquer coisa
Me impõe esta aventura indefinida,
Insensata e antiga, e persevero
Em buscar pelo tempo desta tarde
O outro tigre, o que não está no verso.


 “O Outro Tigre” (pp. 198-9) in O Fazedor (Obras completas II), Jorge Luis Borges.
Tradução: Fernando Pinto do Amaral. Editorial Teorema, 1998


                                

Amanheceu assim

janeiro 08, 2013

Libertinagem de pensamentos e obras


Telmo não se compadecia com a disciplina imposta aos educandos pela férula e a vergasta. Da pauta pedagógica não se fala. A regra fazia carneiros e aquele menino gostava de pensar, bem ou mal, pela sua cabeça. Os alunos (…) não precisavam de ter mais ideias que aquelas que lhes ministravam os padres-mestres, por sua vez metidos dentro das velhas sebentas aristotélicas.  Como tal, carecendo de ideias próprias, a tendência natural, era que as não admitissem nos outros. Tratava-se, bem entendido, de ideias comezinhas, de trazer por Braga ou por casa, nada se parecendo com a prova ontológica, sol do sistema divino, mas ideias subalternas, ideias ínfimas de que se compõe a personalidade do fabiano em geral e do braguês em particular. Ora Telmo, rico, rebelde, malcriado, mimalho, era o contrário de tais tortulhos, com dentes alçados para o açafate da vida. Toda a questão para eles estava nesta habilitação. Faziam-na encornando bem os compêndios e autores dos programas. O “quid”, por conseguinte, consistia em ter memória. A memória pedia-se à milagrosa Santa Catarina, advogada dos estudantinhos junto do Espírito Santo. Pedia-se-lhe todas as manhãs à missa obrigatória, ao terço obrigatório, e mais rezas litúrgicas ao sentarem-se e erguerem-se da mesa. Telmo, que não compartilhava de magro refeitório colegial, era havido como libertino. Libertino de pensamentos e obras.

“A casa grande de Romarigães” (pp.253-254), Aquilino Ribeiro. Bertrand Editora


[imagem fumada]

janeiro 05, 2013

O mormo ecuménico



O crianço ia medrando a bom medrar, muito vivo e esperto, os olhos pretos e grandes da mãe, olhos que nem estorninhos às cerejas, de seu talvez o cabelo sobre o ruivo e o queixo voluntarioso. Vira-o a primeira vez a burrinhar com a chucha na boca, e o ranho como um pavio pendente, por entre as pernas dos fregueses, e causara-lhe nojo. Em Braga, no Inverno, com tanta água pelos taludes, sem falar na das pias bentas, o ar mefítico e salitroso dos claustros e igrejas, nevoeiros de incenso, geravam-se epidemias de mormo, um mormo contumaz e ecuménico, que resistia aos chás mais carregados de salsa-parrilha e electuários do Curvo Semedo. O menino devia estar sob o cutelo desta epidemia, donde o monco amarelo que lhe escorria pelo queixo e o fez desgostar da paternidade.

“A casa grande de Romarigães” (pp.160) , Aquilino Ribeiro. Bertrand Editora. 

[imagem: capa do livro de Luiz Pacheco]