janeiro 10, 2013

Cativeiros



Penso num tigre. Esta penumbra exalta
A vasta biblioteca laboriosa
E parece afastar as prateleiras;
Forte, inocente, ensanguentado e novo,
Irá pela sua selva e pela manhã
E marcará seu rasto na lodosa
Margem de um rio cujo nome ignora
(Não há passado nem porvir, nem nomes
No seu mundo, só um instante certo)
E salvará as bárbaras distâncias,
Farejando no entrelaçado labirinto
Entre os odores o odor da alba
E o odor deleitoso do veado.
Por entre as riscas do bambu decifro
Suas riscas, pressinto a ossatura
Debaixo da pele esplêndida que vibra.
Interpõe-se em vão todos os mares
Convexos e os desertos do planeta;
Desta casa de um tão remoto porto
Da América do Sul, te sigo e sonho,
Ó tigre que é das margens do rio Ganges.

Na minha alma escorre a tarde e penso
Que o tigre vocativo do meu verso
É um tigre de símbolos e sombras,
Uma série de tropos literários
E de memórias da enciclopédia,
Não o tigre fatal, a aziaga jóia
Que, sob o sol ou a diversa lua,
Vai cumprindo em Samatra ou em Bengala
A rotina do amor, do ócio da morte.
Ao simbólico tigre eu quis opor
O verdadeiro, o de cálido sangue,
O que dizima a multidão dos búfalos
E hoje, 3 de Agosto de 59,
Alarga na planície uma pausada
Sombra, mas já o facto de o dizer
E de conjecturar-lhe a circunstância
Fá-lo ficção da arte e não criatura
Vivente dessas que andam pela terra.

Procuraremos um terceiro tigre.
Será, tal como os outros, uma forma
Do meu sonho, um sistema de palavras
Humanas, não o tigre vertebrado
Que, para além das vãs mitologias,
Pisa a terra. Bem sei, mas qualquer coisa
Me impõe esta aventura indefinida,
Insensata e antiga, e persevero
Em buscar pelo tempo desta tarde
O outro tigre, o que não está no verso.


 “O Outro Tigre” (pp. 198-9) in O Fazedor (Obras completas II), Jorge Luis Borges.
Tradução: Fernando Pinto do Amaral. Editorial Teorema, 1998


                                

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