Um dia, à saída da visão terrífica,
Que eu erga o meu cântico de júbilo e louvor aos Anjos cúmplices.
"As Elegias de Duíno" (fragmento de A Décima Elegia), Rainer Maria Rilke
Vivo abancado como um anjo no barbeiro. Rimbaud
Um dia, à saída da visão terrífica,
Que eu erga o meu cântico de júbilo e louvor aos Anjos cúmplices.
"As Elegias de Duíno" (fragmento de A Décima Elegia), Rainer Maria Rilke
Cheguei ao primeiro aniversário da Morte de Eduardo Prado Coelho ainda antes dos jornais, pelo Portugal dos Pequeninos. O EPC era o “intelectual” do burgo. O “vai a todas”. Quando éramos putos, era da praxe a expressão “pareces o Eduardo Prado Coelho”, se alguém saltava a pocinha com uma “ideia”, ou congeminava umas secções de cinema francês. Sem me aperceber lá o fui lendo e escutando de mansinho. Nunca fui um admirador (ou grande conhecedor?), mas fazem falta gajos como o Eduardo Prado Coelho. Faz falta alguém para conversar, nem que seja baixinho.
"O Grito" Edvard Munch
Vivo atormentado. Sou, para além disso, como já o disse, um tipo anacrónico. Neste tempo único, mastigado diariamente por anátemas do mais fino terror, a brusquidão de um pensamento envolve terríficas ondulações. As marés vivas. No entanto, debalde. Chegadas à praia, desavindas, convidam ao desmaio das penumbras guarda-sol. É o tempo de fuga. Por isso, talvez, não tenho férias. Por isso e porque a falácia do deus menor não mo permite. A coisa sobe. Quero dizer, o investimento ou o PIB, graças, pois claro, ao empenho do Sr. Eng. Pergunto-me então, que livros para férias. Existem livros a carregar para férias com a maldição da casa às costas? Eu cá, sem milongas, leio todo o ano com a casa às costas. Carrego agora o Fiódor, uns livrinhos(?) (assim os denomina o João), do Tolstoi e do Henry James a chegar ao Kafka (pequeninas obras primas – entre outros, numa iniciativa DN e Quasi), passando por uma rebaldaria de calhamaços ligados por umbilical cordão à história e à filosofia. É todo um pé canhão de palavras na corda bamba. Todo o ano.
Por motivos nada alheios ao escriba, entre viagens curtas de rapina, apenas agora relembro o esquecidíssimo poeta Ruy Belo a um Portugal “que verdadeiramente não existe”. Ruy Belo morreu a 8 de Agosto de 1978 (30 anos). Parece que a partir de agora (embora já com várias reedições das suas obras) os meliantes do regime finalmente lhe deitaram a unha. Lá está a impagável Inês Pedrosa e adivinho outros. Nada contra se lerem os poemas.
MORTE AO MEIO-DIA
No meu país não acontece nada
à terra vai-se pela estrada em frente
Novembro é quanta cor o céu consente
às casas com que o frio abre a praça
Dezembro vibra vidros brande as folhas
a brisa sopra e corre e varre o adro menos mal
que o mais zeloso varredor municipal
Mas que fazer de toda esta cor azul
que cobre os campos neste meu país do sul?
A gente é previdente cala-se e mais nada
A boca é pra comer e pra trazer fechada
o único caminho é direito ao sol
No meu país não acontece nada
o corpo curva ao peso de uma alma que não sente
Todos temos janela para o mar voltada
o fisco vela e a palavra era para toda a gente
E juntam-se na casa portuguesa
a saudade e o transístor sob o céu azul
A indústria prospera e fazem-se ao abrigo
da velha lei mental pastilhas de mentol
Morre-se a ocidente como o sol à tarde
Cai a sirene sob o sol a pino
Da inspecção do rosto o próprio olhar nos arde
Nesta orla costeira qual de nós foi um dia menino?
Há neste mundo seres para quem
a vida não contém contentamento
E a nação faz um apelo à mãe,
atenta a gravidade do momento
O meu país é o que o mar não quer
é o pescador cuspido à praia à luz
pois a areia cresceu e a gente em vão requer
curvada o que de fronte erguida já lhe pertencia
A minha terra é uma grande estrada
que põe a pedra entre o homem e a mulher
O homem vende a vida e verga sob a enxada
O meu país é o que o mar não quer
in “Boca Bilingue” (1966)