janeiro 31, 2012

Uma estória de “Uma história da leitura”


Como chegamos a determinados livros? Pois, através de sugestões (e aqui a trama é infinita – directa e indirectamente), por curiosidade e experimentação, por continuidade (fenómeno que começa com um livro ou autor e continuas a ler tudo à volta – seja do autor, seja da tua cabecinha); e, por fim, através de uma maquinação de forças ininteligíveis que convergem para um determinado ponto: esse momento. Todas as anteriores conjugadas, também suportariam outra tese.

Terei chegado a “Uma História de Leitura” de Alberto Manguel estouvadamente, sem pressas, e de forma anacrónica. Para aclarar esse momento teria que recuar muitos outros, e provavelmente, o caminho percorrido encaixaria solenemente em vários dos pressupostos atrás expostos. Factos, dois apenas: uma edição (2007) de “Um Diário de Leituras” do autor na estante, e a procura de “The Dictionary of Imaginary Places” (encontrado numa biblioteca universitária), do qual não conheço edição portuguesa. Para além, refira-se um entusiasmo particular por escritores que escrevem sobre escritores, livros e leituras. E atrás de tudo isso, um labirinto, um espelho e talvez Jorge Luís Borges, antigo vizinho do 2º esquerdo.

Terei começado, parece-me, a leitura de “Uma História da Leitura” quase ao mesmo tempo que descobria um espaço na blogosfera onde também se escrevia sobre livros e leituras, e onde estranhamente (ou talvez não), enxertos de “Uma História da Leitura” surgiam aos nossos olhos como uma conjugação de forças que convergem para um dado momento. Esse momento.

janeiro 27, 2012

Na Tasquinha do Portugal


Singular, o país borracheira. Acorda e não se lembra de nada. Por vezes, ainda bêbado, lá remói um sentimento, barafusta, adverte, para logo voltar a dormitar ou seguir viagem com um comprimido ou dois, dos brandinhos. Já sabíamos que por estas bandas não se indicia a memória, esta simplesmente está em extinção, mas a lembrança, que diabo!, a parente pequenina, seria legítimo nela crermos, e dela nos socorrermos. 
Ainda recentemente era o caso das Maçons, que alguns (mais argutos, presume-se) não confundiam com Maçonaria e outros com a Marcenaria, e fuja-se da expressão Pedreiro Livre, que nos remete para trolha, livre ou não, mas trabalhador. Extinguiu-se rapidamente a vozearia, refinando-se as baterias para EDP e as Águas (nem para lavar os pés) de Portugal: que bebedeira interminável, e que ressaca colossal, que desmemoriado (re)acordar sórdido; mas atento, perscrutador, logo rejuvenescido como uma alface, já subjugado ao acordo de concertação social, aqui e ali atafulhando o Sr. Proença de algumas carvalhadas, comentando ao que parece as futuras relações de trabalho, emborcando mais uns comentadores à jorna, até à hora do jogo. E até à hora do jogo, aquecia o Padre Cavaco de Boliqueime, uma vida inteira com os pobres, a esmolar, e ainda hoje como amanhã, sem qualquer horizonte de malga que se veja. Sonhos de rapar o tacho. E depois vomita-se. A dor de cabeça, essa, mantém-se, sorrateira e manhosa, superficialmente acariciando a nuca e o cachaço. O garrote da austeridade aperta soalheiro a cada manhã. A cada empréstimo. A usura resmunga mais uns cêntimos por causa das coisas; e apesar das bebedeiras, dos comprimidos, das privatizações em injectável, e das barricas de soro televisivo, o corpo resmunga, pede mais, canaliza toda a mentira possível para manter a adição. Nega(-se). O corpo corrompe-se, aqui e ali, cogitamos nós. Acorda e não se lembra de nada…

janeiro 24, 2012

Versão actualizada: Angolanos, todos em força para Portugal


«Uma crónica crítica em relação a Angola, do jornalista Pedro Rosa Mendes, terá levado a RDP a acabar com o espaço de opinião "Este Tempo", da Antena 1.»  sacado AQUI

janeiro 23, 2012

E mais tarde as classes a crédito

“Prisioneira de um universo cujos mecanismos lhe são misteriosos, ainda que a escola ensine o futuro da ciência e a fé no progresso, a massa dos cidadãos do século XX não participa nos assuntos públicos. A democratização das instituições, durante os decénios precedentes, não foi mais do que uma ilusão e as reformas quase nada mudaram. É um facto que estas tinham permitido uma melhoria global das condições de vida, do equipamento, da instrução ou das condições sanitárias. Estas reformas ocupam e estimulam as classes instruídas; enriquecem-nas igualmente e aumentam o seu poder na sociedade; mas isso não contribui em nada para que as classes populares participem nos assuntos que lhes dizem respeito.”


“A Grande Guerra 1914-1918”, Marc Ferro, Edições 70. Tradução de Stella Lourenço

janeiro 22, 2012

Um homem sai de casa. Desce a vereda alcatroada.


Aproximo-me do quiosque da esquina. Imagino uma gigantesca e colorida tabacaria. Hesito. Já não compro cigarros. Sussurro:” parece que já não fumo…até ver…” Escondo os dedos nas mãos e as mãos nos bolsos. Tem sido assim. Não me aproximo muito. Não compro o jornal, não teria como fazê-lo com os dedos escondidos nas mãos e as mãos escondidas nos bolsos. “O jornal está caro”- penso logo aí, e ainda ouço um “até ver…” enquanto me dirijo à padaria, sabendo-a vazia, ainda com os dedos escondidos nas mãos e as mãos escondidas nos bolsos e os bolsos escondidos...

(Mais tarde, chegado a casa o homem relê:
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu
.”
“Tabacaria”, Álvaro de Campos )

janeiro 19, 2012

E então começou assim…

 
 “Aqui estamos mais uma vez sozinhos. Tudo isto é tão lento, tão pesado, tão triste… Dentro de pouco tempo estarei velho. Tudo então se acabará. Tanta gente que passou por aqui por este quarto. Disseram coisas. Não me disseram grande coisa. Foram-se embora. Envelheceram, tornaram-se lentos e miseráveis, cada qual no seu recanto da terra.”

“Morte a Crédito”, Louis-Ferdinand Céline. Edição Assírio&Alvim. 
Tradução de Luiza Neto Jorge.

janeiro 13, 2012

Cloaca



Com o país a saque, assistimos ontem ao jornal da RTP2 das 22h, que desde há uns tempos parece que se chama enfaticamente de “Hoje”. Pois o Hoje durou ontem cerca de 40min., assumindo um processo de engorda característico de outros noticiários, (devidamente) repleto de couratos televisivos. Num cenário de aconchegado calorzinho, a apresentadora menina Felgueiras, apropriadamente semi-vestida, lá vai debitando aos gritinhos, enquanto caminha para trás, para a frente e, às vezes, para os lados.
O prato da semana, substituindo o velhinho da semana anterior (as lojas maçónicas em diatribes com as secretas), serve-se quentinho: nomeações para a EDP e Águas de Portugal. Em estúdio, a análise do convidado analisa. Sem ferir susceptibilidades; na posse de dados limitados; reconhecendo algum amiguismo, e deambulando entre a história da mulher de César e uma ou outra situação nomeadamente (e obviamente) contra-indicada. Risinhos. [esta(va)mos enganados quanto ao ensopado de filhadaputismos, mentiras, hipocrisia, trapaças e desprezo pela coisa cá em baixo]
Para petisco seguinte, uma visitinha à Grécia, país dos mal comportados, sinistramente emagrecido, onde agora as famílias são obrigadas a entregar as criancinhas a instituições, incapazes já de as sustentar. E ainda assim, nas ruas, manifestações, desordem e desvario. Por cá nada disso, nós ainda podemos beber copos de 5 ao balcão do Peidolas, com o IVA a 13, pois então.
E exportar pastéis de nata: encharcar o mundo de pastéis de nata; sugere-nos em sequência o nosso ministro da economia, o tio Álvaro. Em força, seguir o exemplo do MacDonald`s, do Nando`s, dos cogumelos canadianos. Sem demora a reportagem leva-nos dos pastéis de nata do Álvaro para Belém, para os pastéis de belém, para os turistas a comer pastéis de nata que são de belém. Entrevistas. Análise.
De seguida, ainda não refeitos, uma bomba: a GUCCI finalmente em Portugal: em Lisboa, ali na avenida. Olha ali a PRADA. Reportagem.
Por fim, ficamos a saber de um festival gourmet a decorrer no Hotel Vila Joya em Albufeira, com a participação de mais de 20 chefes e cerca de 65 estrelas Michelin.Entrevistas. Reportagem.
Encher o bandulho a ver os artistas na cozinha pode custar um pouco mais que um ordenado mínimo, por pessoa. Se ficarmos pela sala dos convivas, a brincadeira não chega a um ordenado mínimo por pessoa. Um festim para estômagos avisados e carteiras com algumas calorias.
Em frente, todos em força…

janeiro 11, 2012

Viagem à volta de quarta-feira

Ele recorda. Catorze e qualquer coisa da tarde ou seriam treze e muito.
Uma mão aproximava-se da estante: Defoe ou Swift?, parecia indicar, enquanto ali ao lado, uns olhos que pertenciam ao corpo que sustentava essa mão, incrivelmente, liam:

“Swift propusera-se ajuizar o género humano e deixou um livro de literatura infantil. Isto deve-se ao facto de as crianças lerem as duas viagens iniciais do capitão Lemuel Gulliver e omitirem as últimas, que são terríveis. Perdeu a memória, mesmo a do passado imediato. Ao despedir-se de um amigo, costumava dizer-lhe: «Boa noite. Espero que não nos voltemos a ver.» Nos últimos dias ia de aposento em aposento, repetindo «Sou o que sou», como que para se aferrar de algum modo à sua íntima raiz.”

J.L. Borges sobre Jonathan Swift, “Biblioteca Pessoal. Prólogos”, Vol. IV das Obras Completas, Edição [magnífica da finada] Teorema. Tradução de Cristina Rodrigues e Artur Guerra.

As minhas cassetes 76: Wolfgang Press

janeiro 10, 2012

Declaração de interesses a interesses não declarados


Governoportuguês: lista de agradecimentos (pagamentos)
E os nomeados* para o Conselho Geral e de Supervisão (CGS) da EDP são:

EduardoCatroga
GabrielPedro (anjo inútil)
CelesteCardona
TeixeiraPinto
Bragade Macedo
IlídioPinto (ex. patrão do Sr. Passos)

 * Leia-se contratados.

janeiro 09, 2012

Porra: o “egoísmo vital experimenta medos pessoais”


«Os trapos da pequena abateram-se; uma após outra as tamancas caíram no vazio da noite e duas asas resplandecentes brotaram das suas espáduas. Ela voou, entre Santa Maria e Santa Madalena, em direcção a um astro rubro e desconhecido onde se encontram as ilhas dos Bem-aventurados. É aí que um ceifeiro misterioso vem todas as noites, com a lua por foice; ceifa, entre os prados de abróteas, estrelas cintilantes que semeia na noite.»

Marcel Schwob, “A Tamanca”, in “Coração Duplo, vol. 1”- Tradução de Raúl Henriques - Edição Cavalo de Ferro


Devo muitos luares de foice a J. L. Borges. E algumas estrelas cintilantes, também. Este pedaço é retirado de uma dessas, obviamente congeminado à luz reflectida de um ocasional espelho. Saiu da pena de Marcel Schwob, um francês que viveu no final do século XIX.