junho 30, 2013

Murmúrios que matam


«Encontrarás lá o meu querer. O lugar que eu amei. Onde os sonhos me enfraqueceram. A minha aldeia, erguida sobre a planície. Cheia de árvores e de folhas, como um mealheiro onde guardamos as nossas recordações. Sentirás que, lá, uma pessoa gostaria de viver para sempre. O amanhecer; a manhã, o meio-dia e a noite, sempre os mesmos; mas com a diferença do ar. Lá, onde o ar muda a cor das coisas; onde a vida corre como se fosse um murmúrio; como se fosse puro murmúrio da vida…»

“Pedro Páramo”, Juan Rulfo. Cavalo de Ferro. 

[deve ser do ar]

junho 19, 2013

Prosa de cortar à faca


Os raios brancos jorram dum tinido de bainhas, a porta roda nos gonzos e o homem aparece, lívido, entre duas manchas negras. Calvo, de crânio polido, cara barbeada, os cantos da boca metidos para dentro como os dos velhos dos asilos, a camisa largamente cortada, um casaco escuro sobre os ombros, ele caminha afoitamente; e os seus olhos vivos, inquietos, perscrutadores, percorrem todas as caras; o seu rosto volta-se para todos os rostos com um movimento compósito que parece feito de mil tremores. Os seus lábios estão agitados; dir-se-ia que murmuram: «A guilhotina! A guilhotina!» Depois, cabeça inclinada, o olhar penetrante fixado a direito na linha da báscula, ele avança como um animal que puxa a charrua. De súbito, choca com a prancha e da sua garganta eleva-se uma voz fina, acre, como um tilintar rachado, com uma nota alta, aguda, sobre a palavra assassino duas vezes repetida.
Um batimento surdo; uma manga de sobrecasaca com a marca branca da mão sobre o prumo esquerdo da guilhotina; um choque delicado; um movimento de pessoas para a fonte sangrenta que deve jorrar; a cesta escura e luzidia atirada para dentro de um dos vagões; trinta segundos para tudo isto desde a porta da prisão.  

“Instantes”, in Coração Duplo, vol.2. Marcel Schwob. Tradução de Raúl Henriques. Cavalo de Ferro. 

junho 11, 2013

"Hábitos alimentares bastante precários"


– Não há dúvida de que são funcionários internacionais. Ao não comer ou ao quase não comer chamam «hábitos alimentares bastante precários». O capitalismo começou a ganhar a batalha cultural posterior à Guerra Fria praticando uma constante dessignificação da linguagem. A própria palavra «globalização», aparentemente, é apenas descritiva de algumas relações de produção e de troca realmente globalizadas. Mas não diz tudo. Porque nessa suposta clareza enunciativa, uns são os globalizadores e outros os globalizados. 

“Milénio II. Nos antípodas”, Manuel Vázquez Montalbán. Tradução de Helena Pitta. Asa.

[foto GP]

junho 07, 2013

O sangue ainda não chegou ao rio


Barcelos, década de 90 do século XX. Local: o balcão de um bar atascado no centro da cidade. Entram dois moinas (tradução: agentes da autoridade), tiram os quicos e juntam-se a nós ao balcão. Finos, claro, perdão, príncipes, e um…huuum…pode ser camarãozinho da costa (as sandes com o resto da cerveja ficavam para mais tarde, misteriosamente teletransportadas para o carro patrulha). Toca o rádio, o walkie talkie, alguns chamavam-lhe radar, um dos agentes atende sem sair do lugar. Cambio. Dá-se o caso de uma rixa fodida no bar X (relativamente perto do Cávado), diz que parece o fim-do-mundo. O outro agente escuta-o calmamente, afaga a pança num soslaio quase feminino, dá um gole no príncipe e chuta: calma, o sangue ainda não chegou ao rio! Nesse dia percebemos até que ponto a irresponsabilidade e o desleixo se deitam (e fodem) com a impunidade.

Não nos merece melhor exemplo que este para teletransportarmos a situação para o veículo da actualidade que nos conduz. Também aqui, parece, é preciso ter calma: a pobreza ainda não chegou ao rio; o desemprego ainda não chegou ao rio; o ruído das barrigas a dar fome ainda não deve ter chegado ao rio. A autoridade, neste caso os companheiros de luta Coelhaspar e Cavaco (entre outros) estão aqui ao lado, junto ao balcão. Percebemos o deixa-os sangrar, o sangue ainda não chegou ao rio. Percebemos até que ponto a irresponsabilidade e o desleixo se deitam (e fodem) com a impunidade. Percebemos?

junho 03, 2013

junho 02, 2013

A múmia ressuscitada [não se trata ainda do companheiro de luta Cavaco]


Múmia no sentido qualitativo mais admirativo, Oñate. Repare na própria presença de um bacalhau nas lojas de salga. Parece uma múmia de peixe com equívoca silhueta ligeiramente vampiresca e, no entanto, mergulhado em água, dessalgado, adquire quase uma consistência de peixe fresco. Mas atenção, é preciso não ter opiniões preconcebidas porque, no fundo da sua substância, o bacalhau assimilou o melhor paladar do sal e, quando é cozinhado, nem é peixe nem é carne nem outra coisa além de uma excelente múmia ressuscitada.

“Milénio II. Nos antípodas” Manuel Vázquez Montalbán. Tradução de helena Pitta. Asa.