Sentia-me bem, estava novamente em casa. Perdêramos tudo: posição, nome e posto, habitação, dinheiro e valores, passado, presente e futuro. Todas as manhãs ao acordar, e todas as noites ao deitar, amaldiçoávamos a morte, que nos convidara, em vão, para o seu sumptuoso festim. E cada um de nós invejava os que tinham caído, pois descansavam debaixo da terra e dos seus restos mortais nasceriam violetas na Primavera seguinte, enquanto nós tínhamos voltado a casa incuravelmente desesperados, estéreis, tolhidos - uma geração destinada à morte, mas por ela repudiada. O veredicto do seu conselho de admissão era irrevogável e final: "Incapaz para a morte.".
junho 30, 2020
junho 25, 2020
junho 24, 2020
junho 20, 2020
O martelo de Pacheco
Eu gosto muito do meu país, mas não tenho muitas ilusões sobre
ele. É um país atrasado, pouco desenvolvido, sem massa crítica, pouco culto,
sem grande qualificação da mão-de-obra, muito dependente de vagas de
superficialidade, onde a maioria das pessoas trabalha duramente para não
receber sequer o mínimo vital, sem vida cívica autónoma do Estado, com uma
economia débil, desindustrializado, com uma agricultura desigual, pouco
cosmopolita, com muitos aproveitadores e alguns bandidos, mas aí como os
outros. É um país que cada vez menos tem autonomia política, dependente da
transferência dos centros de decisão para Bruxelas. Aquilo em que somos
melhores não coloca o pão no prato ao fim do dia, como agora se diz. Temos uma
língua e uma literatura de valor universal, a melhor obra dos portugueses, mas
ninguém come literatura. E temos uma democracia que é um valor que só quem sabe
o que é ditadura percebe qual é.
(José Pacheco Pereira, aqui)
junho 19, 2020
Música de uma fanada melancolia
A canonização em curso da burrice
e da imbecilidade teve mais um momento zen (vários até), através da vandalização
bacoca de estátuas; maria-vai-com-as-outras,
a volúpia do politicamente correcto aproveita qualquer acção, qualquer
mecanismo, qualquer movimento que (supostamente) a justifique. Os seus defensores: censores de
livros e escritores, de filmes e músicas, censores e revisionistas da história, simples ignorantes (outro cânone dos nossos dias), jornadeiam a
reboque das redes socais, de abaixo-assinados, advogando as (nossas?) causas,
definindo o que devemos comer, dizer, foder.
Está tudo ligado ao vórtice da liberdade como lifestyle, sempre passageira como o piropo proibido. O resto fica na mesma, subindo alguns (sempre bem posicionados) aos meandros do poder que juraram derrubar, ficando os outros
a pairar no vazio, ou a carregar a padiola do costume. "Escutando bem", como escreveu um dia Sebastão Alba, "ouve-se como ao pé das estátuas/música de uma fanada melancolia".
Je ne fais que passer
Não conhecemos a verdadeira identidade de Miss. Tic; a artista perde oito anos de trabalho no incêndio do seu ateliê; publicou "je ne fais que passer" [apenas de passagem], livro esgotado
.
Nunca saberemos a data exacta do óbito do escritor Pierre Siniac, descoberto inerte aproximadamente um mês depois do início da sua morte
.
Por sua vontade, respeitada até hoje, o nome de Frédéric Mistral não está inscrito no seu túmulo
junho 18, 2020
A vida a passar por um canudo (actualização)
(18/06/2020)
A saga continua. As obras espalham-se como uma grande mancha de óleo. Rodeando a construção das novas superfícies comerciais (e talvez com o patrocínio destas), uma nova alcatifa vai surgindo na rede viária, com os trabalhos a durarem de noite e de dia. Por perto, em várias ruas de São Vicente, continua a operação cosmética dos passeios e estacionamentos e mobiliário urbano. Aqui a saga ganha contornos de uma portugalidade inequívoca. Uma espécie de cosmética de preguiçosos, eivada de um espírito de serviço público que a arrasta no tempo. Até às eleições, presume-se. A modernidade saloia veio para ficar.
Bom dia, doamna princesa
E, com um alegre tilintar de
campainhas, a carruagem passou entre os montes de cadáveres nus e de duas
fileiras de gente humildemente curvada, que apertava nos braços o cruel
espólio. Passou a trote largo, puxada pelos belos cavalos brancos, que o
chicote do eunuco Grigori, solene e inchado na boleia, excitava com o ligeiro
baloiçar da comprida ponta vermelha.
junho 08, 2020
junho 07, 2020
junho 01, 2020
As peças que faltam
Por exemplo:
A autobiografia de Agripa desapareceu, assim como o seu tratado de geografia
.
Georges Perec morre sem acabar de nascer; "Eu Nasci" é o título do livro que ele deixa inacabado
.
Dorothy Parker foi cremada em 1967 (o epitáfio sugerido por Dottie: "Desculpem a poeira"); a urna ficou na funerária ate 1973, data em que acabou no notário, que a guardou numa gaveta, onde ficou esquecida até 1988
.
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