abril 08, 2009

A linguagem e o papagaio – ambos empalhados

"O Papagaio de Flaubert", Julian Barnes, Quetzal, 1988 - tradução de Ana Maria Amador
Devo alguns momentos verdadeiramente únicos à inquietude da leitura. Dá-se a circunstância, a todos os títulos excepcional, de convergirem em dado momento, caminhos outrora bifurcados que nos arremessam o sortilégio de um livro. O próprio caminho é, em si mesmo, parte do encantamento. Chegou-me às mãos, depois de várias vezes ter sido, de uma forma ou de outra, agitado a meus ouvidos, o livro “O Papagaio de Flaubert”, saído da pena de Julian Barnes, cuja edição original remonta ao ano de 1984. Insuficientemente antigo para, nas palavras de um amigo, merecer ser visitado. Desse ano recordo por exemplo o filme de Sergio Leone “Once Upon a Time in América”, o primeiro álbum dos The Smiths, o homónimo “The Smiths”, escapando ainda no decorrer do mesmo ano o segundo álbum, aliás uma colectânea de êxitos, incluindo alguns lados b, “Hatful of Hollow”, feito único, visto apenas existir um álbum de originais publicado. Os Death in June divulgavam “Borial” e mais uma compilação denominada “From Torture To Conscience”, entre outros, como usual, e por cá no burgo os GNR lançavam “Defeitos Especiais” à proa de um piloto automático, e ainda não se vislumbravam sinais da modorra modernista encaixotada em centros comerciais gigantescos e hipermercados (estes abririam em 1985 – Matosinhos), embora já existissem algumas viagens em turística, de reconhecimento ao Dallas e ao Brasília, para citar apenas o Porto.
Um pouco antes de 1984, um médico de carreira viúvo, que um dia havia sonhado ser escritor, tendo optado por seguir apenas medicina (dada a impossibilidade de fazer bem e ao mesmo tempo duas coisas), calcorreava as ruas de Rouen onde Flaubert nasceu e Croisset onde viveu. Eu pela mesma altura estava a braços com a instrução preparatória, ou até Liceal, onde por carga de água nenhuma se tinha pé em Flaubert. Mas como o rio era perto, tínhamos pé noutras coisas, sem dúvida, tanto ou mais, aliciantes. Foi perto desse rio que comecei a ler coisas mais sérias. Hoje, um pouco longe, mas por momentos sentindo o seu fresco (tinha dias) aroma leio:

Contra a estupidez do meu tempo, sinto correntes de ódio que me sufocam. A merda chega-me à boca como se tivesse uma hérnia estrangulada. Mas quero conservá-la, fixá-la, endurecê-la; quero formar uma pasta com a qual possa cobrir o século XIX, do mesmo modo que pintam os pagodes indianos com excrementos de vaca.

Gustave Flaubert citado in "O Papagaio de Flaubert"

Um comentário:

Anônimo disse...

Grande texto. Excelente proposta