A coisa havia começado assim: “É por um acaso que escrevo quando o copo de cerveja está (já) a meio”. Minutos antes desta enigmática sentença, recordo-o bem, estava eu a reflectir na problemática sempre pertinente da disposição táctica do Sporting, sem esquecer a inusitada e deslumbrante ausência de laterais com o mínimo de categoria, quando uma luz, a início, dir-se-ia, um lampejo praticamente imperceptível, mas depois insinuando-se frenética e ofuscante, pulsou no meu cérebro. Curiosamente, agora que a tento recordar (a pulsão logo aí terá degenerado em ideia – é sempre assim), recorrendo a meios pouco ortodoxos, destapo, não sem algum desnorte, a capinha de sombras verdadeiramente tenebrosas que nos salpicam os dias. Nem o percebemos. Entretanto, nesta reconstituição histórica recente para chegar à tal ideia, recordo essoutros momentos fatídicos em que tudo se ganha e tudo se perde num segundo: uma ideia assombrosa; um poema irrepreensível; um reconciliamento intimo; uma palavra desencaminhada; um projecto grandioso a três fases; um capítulo inteirinho da tese. Seguidamente, tudo se esfuma, entre uma antiga passagem estreita que culmina numa escadaria de madeira que dá passagem para a cangosta, e uma queda, nocturna e grave, que esfacela uma canela. Chegados à marquise, alguém ressona, e o vento dá de mansinho nas vidraças forradas a cortinados com renda, evocando todas essas vozes que já não recordamos. No dia seguinte talvez cheire a rosca e café com leite. Está tudo em camadas no mundo. É provável que nos voltemos a encontrar.
imagem: "A persistência da memória", Salvador Dali, 1931
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