"O cão amarelo" de Rafael Trevisol: bohemiosdebar.blogspot.com
A memória de Alfredo está fraca.
Depois de mais uma viagem em terras lusas, desta feita, sem desprimor, acompanhando os montes e vales da Beira interior até Espanha, por entre esqueletos de castelos e memórias cauterizadas pelo fogo e pelo sol, Alfredo rejubilou, ninguém sabe bem porquê, com o regresso. Alfredo é bem capaz de ser um conservador altivo com laivos de anarquista desprendido. Às vezes é outra coisa qualquer olhando-se ao espelho. Fui a sua casa e a inicio nem uma palavra. “A memória de Alfredo está fraca”, disse-me a sua companheira. Rimo-nos os dois. Entrementes, Alfredo poisava a mão na palmatória. “Que tal?” arrisquei, curvando-me para o observar no seu nicho acolchoado. Alfredo olhava a janela. “Sabes, hoje vim para trás duas vezes, a casa, duas vezes, observa bem, para verificar o verificado: se a puta da torradeira estava desligada?... se o não estivesse, oh, sim, se não estivesse devidamente desligada, não estaria a casota a arder, a arder como uma desvairada, não me dizes? Fechei todas as torneiras, fechei a água no exterior da casa, estive quase para remediar-me, bem o sabes, a tolher-me de coragem e sem escrúpulos incentivar a caracoleta do andar de baixo ao crime. A senhora arcaria com as consequências, ficaria responsável pela casa, que até é sua, e eu planearia ao pormenor a destruição da dita. E estaria a milhas. E estaria livre”. Alfredo, ao acabar de falar, em êxtase, levantando-se de um trago, dirigiu-se-me com um olhar triste de cão amarelo: “ O pior, sabes, o pior, é que não passou tudo de um sonho, inclusive o retorno a casa, mas que depois não chegou ao concreto, isto é, a coisa não chegou a rebentar, mas o plano estava traçado, definido ao pormenor do osso”. “E então”? perguntei em piloto automático. “ E então, meu amigo, não me recordo de mais nada…”
Saí de casa do meu amigo Alfredo com um rumo definido. Contornei a padaria fechada e segui a rua do costume, sem pressas, recordando, não sei bem porquê, apenas um olhar triste de cão amarelo. Agora, aqui sentado, não sei bem se não terei sonhado tudo isto.
Depois de mais uma viagem em terras lusas, desta feita, sem desprimor, acompanhando os montes e vales da Beira interior até Espanha, por entre esqueletos de castelos e memórias cauterizadas pelo fogo e pelo sol, Alfredo rejubilou, ninguém sabe bem porquê, com o regresso. Alfredo é bem capaz de ser um conservador altivo com laivos de anarquista desprendido. Às vezes é outra coisa qualquer olhando-se ao espelho. Fui a sua casa e a inicio nem uma palavra. “A memória de Alfredo está fraca”, disse-me a sua companheira. Rimo-nos os dois. Entrementes, Alfredo poisava a mão na palmatória. “Que tal?” arrisquei, curvando-me para o observar no seu nicho acolchoado. Alfredo olhava a janela. “Sabes, hoje vim para trás duas vezes, a casa, duas vezes, observa bem, para verificar o verificado: se a puta da torradeira estava desligada?... se o não estivesse, oh, sim, se não estivesse devidamente desligada, não estaria a casota a arder, a arder como uma desvairada, não me dizes? Fechei todas as torneiras, fechei a água no exterior da casa, estive quase para remediar-me, bem o sabes, a tolher-me de coragem e sem escrúpulos incentivar a caracoleta do andar de baixo ao crime. A senhora arcaria com as consequências, ficaria responsável pela casa, que até é sua, e eu planearia ao pormenor a destruição da dita. E estaria a milhas. E estaria livre”. Alfredo, ao acabar de falar, em êxtase, levantando-se de um trago, dirigiu-se-me com um olhar triste de cão amarelo: “ O pior, sabes, o pior, é que não passou tudo de um sonho, inclusive o retorno a casa, mas que depois não chegou ao concreto, isto é, a coisa não chegou a rebentar, mas o plano estava traçado, definido ao pormenor do osso”. “E então”? perguntei em piloto automático. “ E então, meu amigo, não me recordo de mais nada…”
Saí de casa do meu amigo Alfredo com um rumo definido. Contornei a padaria fechada e segui a rua do costume, sem pressas, recordando, não sei bem porquê, apenas um olhar triste de cão amarelo. Agora, aqui sentado, não sei bem se não terei sonhado tudo isto.
Um comentário:
Finalmente de volta. Já sentiamos a tua falta. Um texto maravilhoso e peculiar.
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