dezembro 29, 2012

Carta da semana: 2012



Companheiros de luta do governo: não se inquietem.
Aqui só visto: na rua e arredores é um correr de carros que nunca mais acaba, montes deles até tem pequenas mensagens escritas, como TRATA-SE, e depois um número de telefone, este fenómeno também é observável em estabelecimentos comerciais e habitações, embora com variantes expositivas, deve ser aquela coisa das redes sociais. Por falar em rede, o que vier é peixe, a malta até está a pensar em juntar o útil ao agradável e chamar à equipa do bairro os Trinca Espinhas (também pensamos em Pele&Osso), atendendo às dietas malucas que fazem esses tresloucados dos desempregados e pessoal do ordenado mínimo e, para além disso, temos que seguir os sábios conselhos da companheira de luta Jonet e habituarmo-nos a petiscar as espinhas, para sabermos como a vida é dura. Na rua, de resto, vai tudo de vento em popa, recordar-se-ão dos oleados que compramos nas promoções para irmos à pesca?,  – seguindo os conselhos do companheiro de luta Cavaco – saibam que também os aproveitamos como gabardine para a chuva e como colete para o carro. À noite, às vezes, fazemos umas corridas doidas, vestidos com os oleados amarelinhos a servir de coletes reflectores, parece uma procissão, tão linda, há mesmo malta que não os tira nem para dormir, aquilo dá um pijama muito jeitoso, principalmente em casas como as nossas, com muita humidade. De resto os vizinhos andam meio desencontrados, a Farrusca nem a vemos, deve andar a estourar a reforma de trezentos euros, há até quem diga que já marcou mesa no réveillon do Hotel Altis, a desvairada. Não sabemos é se deixam entrar malta vestida de oleado. Mas pode ser uma festa temática, nunca se sabe. Bom ano.

[fotograma de Metropolis]


dezembro 28, 2012

Corte e costura



Nós Tivemos as Mães de Bragança, verdadeira instituição da cueca de gola alta, confraria do cinto de castidade, associação protectora dos maridos embruxados e desencaminhados. Nuestros hermanos, aqui ao lado, presenteiam-nos com as Mães de Valência, cujo estilo desprendido e arrojado se alia a um espírito empreendedor. Outra cepa.

dezembro 26, 2012

"O que um morto deixa não é nada"



– De certeza que atiraram a arma à lagoa. – O comissário falava, meio perdido. – Há muitas facas no fundo do rio. Quando era pequeno mergulhava e encontrava sempre…
  – Facas?
 – Facas e mortos. Um cemitério. Suicidas, bêbados, índios, mulheres. Cadáveres e mais cadáveres debaixo da lagoa. Vi um velho, um dia, o cabelo comprido e branco tinha continuado a crescer-lhe e parecia um tule na água transparente.
 – Deteve-se. – Na água o corpo não se corrompe, a roupa sim, por isso os mortos flutuam nus entre as ervas. Vi mortos pálidos, de pé, com os olhos abertos, como grandes peixes no aquário.


“Alvo noturno” (pp.61-62), Ricardo Piglia. Tradução de Jorge Fallorca. Teorema/leya.

dezembro 22, 2012

O nada a avançado centro



A verdadeira alienação, a única que coloca um problema a Stirner, é a sua própria, enquanto sujeito existente, enquanto mónada. Nunca é a do colectivo humano. Deste modo, para quê suprimir a alienação religiosa, se é para logo a substituir pelo fetichismo do Homem, ou seja, do Outro, forma de idolatria mais refinada, sem dúvida, mas igualmente alienante, se não mais? De facto, «o divino olha para deus, o humano olha para o homem. A minha [Stirner] causa não é divina, nem humana […] não é geral, mas única, tal como eu sou único». Por isso, a recusa de todos os atributos genéricos, de todas essas entidades abstractas que são a Natureza humana, a Essência do homem, etc. O regresso ao Único, ao Eu sem conteúdo, ou seja, a nada: “fundei a minha causa sobre nada”…Mas este nada é o centro de tudo.

“História do Anarquismo” (pp. 145), Jean Préposiet. Tradução de Pedro Elói Duarte. Edições 70. 

dezembro 18, 2012

Momento Chullage: a música ainda é uma arma

Cartografias do espaço vazio



Enquanto avança pelo longo corredor da ala ocidental do casarão, sente a sua solidão com mais intensidade, mas também com mais prazer que nunca. O prazer é absolutamente novo para ele e parece-lhe que está ligado à dor de avançar sozinho pelo corredor familiar. Enquanto continua a caminhar por esse corredor, avança tão profundamente na análise desse novo prazer, que acaba por temer a sensação de entrar em terreno desconhecido, no espaço onde se encontram os limites  da sua capacidade de pensar. É como se tivesse chegado ao sítio onde já não pode ir mais além pensando. Sente uma breve vertigem, como se já estivesse a avançar pelo corredor que conduz ao espaço vazio que existe fora de toda a família humana, a começar pela sua. Desde que o operaram, tem sentido, dia a dia, uma estranha expansão dos recantos ou, melhor dito, das células do seu cérebro.

“Desaparece Daqui” (pp. 132.133), in Exploradores do Abismo, Enrique Vila-Matas. Teorema. Tradução de Jorge Fallorca. 


dezembro 17, 2012

Fuga para a vitória



No princípio era a concorrência. Proliferam a granel os players. O consumidor escolhe. O consumidor confunde-se: é para o seu bem. Entretanto anda de um lado para o outro qual barata tonta, para ver o que está mais barato (tonto). “A gente passeia, e ao mesmo tempo vai sabendo das coisas”, diz, quando lhe perguntam se faz as contas às passeatas. Ali ao lado já as (supostas) concorrentes se arranjam umas com as outras. Cá para fora simulam-se guerras (propagandísticas). Após se entreterem a fazer o seu papel de lebre na corrida, umas desistem. Ficam pelo caminho: ora porque são compradas, ora por que fazem parte do mesmo grupo, ora porque já ganharam o que tinham que ganhar e voltam para a terrinha. Ora porque nunca existiram. O consumidor está agarrado e habituado à festa: afinal era apaparicado, ele é que escolhia. Depois chegam as fusões. A coisa aquece. Ficam dois competidores. Às vezes apenas um, partilhado em dois. O inimigo de ontem, o monopólio, é o amigo encoberto de hoje. E o consumidor já sabe: é tudo para o seu bem.  

dezembro 16, 2012

Sporting: sem espinhas?


Ontem lá conseguimos empatar. Um destes dias, ainda conseguimos ganhar, vão ver. Diz que não custa nada. Entretanto, o Sporting continua a ser um verdadeiro centro de emprego em Portugal. Para além de continuar a dar trabalho a seres humanos que juram a pés juntos que ainda vão aprender a jogar futebol, mas que recebem como se já o fizessem, para além de continuar a pagar a antigos treinadores que vai generosamente substituindo (e assim aliviando a segurança social), para além de tudo isto, ainda continua a contratar. E ainda dizem que está em falência técnica. 

[sardines]

dezembro 10, 2012

Brasileiro, português de Angola


O negócio, para citar a irmandade brasileira, tem jeito não. Já se sabia da descabelada erosão dos nossos cérebros perpetrada no desígnio (mais um) da ortografia, chamando-se-lhe acordo, revelando-se na hora, eufemismo do mais fino quilate. Outros negócios, esses sim, florescem: a irmandade angolana, a compras, RTP, jornais, bancos, insignificâncias legitimadas na mais pura das convicções possidentes (petróleo e diamantes), tudo ao desbarato, que isto é terra de mão estendida. Essa mão estendida encobre outra: a mão escondida. A que acode aos negócios, uns e outros, sempre os seus, os mesmos que nunca colidem com os outros, encaixada na retórica encapotada do controlismo democrata, tudo para nós, nada contra nós. Assim vai a RelvasTP negociando e erodindo quem pega onda diferente, e assim vai o controleiro que se descontrola na aula e solta o gabinete de monotorização dos blogues, corolário de meses a roer-se por não se saber de tão distinto empreendimento. É assim a inteligência que nos pastoreia: de que vale espiar se ninguém sabe? No dito da irmandade brasileira, tem eufemismos para tudo, não? Mas se calhar vamos é ter um pai de santo… angolano. 

[imagem de Mana Neyestan]

dezembro 09, 2012

“Por mais que reine, o povo soberano nunca governa”


It's life, John, but not as we know it.

«Os libertários foram os únicos que compreenderam que o princípio de autoridade não perdeu nada da sua força – muito pelo contrário – em democracia. (…) De facto, o poder democrático tem um efeito duplo. Por um lado, ao apresentar-se como a expressão da vontade geral, tem facilidade em manter o indivíduo sob a dependência da lei, considerada oriunda desta vontade indiscernível, e o Estado é visto como representante do interesse geral face aos interesses particulares. Por outro lado, o governo democrático não tem pejo em afirmar-se como defensor natural dos direitos imprescritíveis da pessoa humana no seio da colectividade. O círculo fecha-se. 
Anónimo e impessoal por definição, o poder democrático parece acima de qualquer suspeita. Como desconfiar de sistema que se refere constantemente à vontade de todos? No entanto, é inquietante vê-lo monopolizar assim o querer da Totalidade. Sendo o Todo considerado superior aos elementos que o compõem, o interesse geral deve sobrepor-se aos interesses particulares. De tal modo que, segundo este princípio, o governo democrático, único interprete desta totalidade fictícia, se arroga o direito pessoal de definir e determinar os limites do interesse geral. Cioso desse direito exclusivo, tende a considerar ilícito qualquer interesse particular, cuja existência, numa sociedade igualitária, não passa de uma tolerância provisória, concedida sob reserva, em todo o caso severamente controlada e cada vez mais precária. De direito, nada deve subsistir por si mesmo fora da Totalidade, pela qual o poder democrático é o único a responder. (…) Actualmente, a necessidade de tudo controlar leva-o à taxinomia: ficheiros, inventários, catálogos, etc. Com a informática o imperium vê-se finalmente na posse de um instrumento com que nem ousava sonhar.»

“História do Anarquismo” (pp.74-75), Jean Préposiet. Tradução de Pedro Elói Duarte. Edições 70.

Nota: registe-se que a primeira edição (em França) data de 1993.


dezembro 08, 2012

As minhas cassetes 96: Talking Heads




I can't seem to face up to the facts
I'm tense and nervous and I can't relax
I can't sleep, 'cause my bed's on fire
Don't touch me I'm a real live wire


"Psyco Killer", in Talking Heads (1977), Talking Heads.

dezembro 06, 2012

Carta da semana: e quem apanha as canas?


Companheiro de luta Cavaco: não se inquiete. Companheiro de luta Cavaco?... ei, companheiro de luta Cavaco? Ah!, não faz mal, bem sabíamos que o companheiro não andava por aí, consegue estar por perto sem andar por aí, ou por aqui, e sem ver, quer dizer, a olhar sem ver, é um sinal de que o silêncio germina mesmo nos locais mais inóspitos.  Não será o mesmo silêncio dos nossos dentes a rasgar a pele, nem o silêncio das noites sem dormir, esse silêncio amplo que nos acolhe em cachos e cuja membrana se cola ao corpo resistindo ao duche e à pedra-pomes, vossa excelência exala essoutro silêncio mofento das penumbras mais recônditas, dos acatares sombrios da mais tenebrosa indiferença, vossa excelência, creia-me, está tão imbuído do tempo antigo que o confunde com as autoroutes por vós tão agigantadas e que nos levam a lado nenhum. Os conselhos do companheiro, não duvide, foram escutados aqui na rua: já não escondemos as adulações mas em breve esconderemos a realidade. A vizinha de cima lá vai plantando flores, mas como ninguém (até ver) as come, entremeia com tangerinas e limões que não colhe, e além estruma um talhão com meia dúzia de couves e alfaces. O da frente lá vai mijando nos canteiros sempre que pode, demarcando o seu território de meia rua, para ele nada melhor que os produtos agrícolas made in continente ou made in pingo doce, fresquinhos e encerados, que a vida custa a todos. A Farrusca já não aparece, anda a cavalo pela sua propriedade de 20 metros quadrados a tentar perceber o que de melhor ali se dá, seguindo o conselho do companheiro Cavaco de voltarmos à lavoura, essa mesma que o companheiro empacotou em remessas enviadas com a nossa alma nos idos noventa, para a tal de Europa, quando éramos modernos. Os fantasmas da frente esquerda-cima confundem-se com reposteiros de época, parece que vão tentar a sorte como figurantes de um filme do Oliveira. Os outros aguardam os saldos para comprar oleados: vamos todos dedicar-nos à pesca. Não se inquiete, seguimos os seus conselhos. Quem anda à chuva molha-se.  

dezembro 04, 2012

O Eça não tem qualquer responsabilidade no sucedido (o calendário dos Maias é lá com eles)


Alguns cidadãos recorreram às mais altas instâncias para saber se a previsão do calendário maia era correta.




“É assim que o mundo acaba”, é título de uma novela de James Morrow datada de 1985, aproveitando uma deixa de T.S. Eliot (a uma epígrafe de Nostradamus).

Eis o nosso epitáfio segundo Morrow:

«EM SAUDOSA MEMÓRIA
DAS
PESSOAS
4 500 000 A.C – 1995 D.C
ERAM MELHORES DO QUE PENSAVAM
NUNCA CHEGARAM A SABER
O QUE ESTAVAM A FAZER»

In”Os Finais de Século – lenda, mito, história de 990 ao ano 2000”, Hillel Schwartz.

dezembro 02, 2012

A singularidade insubstituível


«Na dialéctica do universal e do particular, o momento essencial não é definido pela totalidade. A verdadeira essência das relações humanas está, pelo contrário, no indivíduo concreto. Hegel é aqui invertido. É o todo, o Estado, que se torna o momento não essencial da relação dialéctica. O essencial, o valor supremo, o verdadeiro sujeito do direito político e histórico,  a célula biológica e social fundamental que constitui a totalidade e a faz existir animando-a a partir do interior, mais não é do que o indivíduo. O anarquismo começa assim pelo egoísmo (Stirner) e apresenta-se como defensor permanente da liberdade subjectiva.»

“História do Anarquismo” (pp.50), Jean Préposiet. Tradução de Pedro Elói Duarte. Edições 70.

novembro 26, 2012

Do centro do desespero

«No entanto, a tristeza da vida quotidiana é o estribo graças ao qual o surrealismo galga os grandes corcéis do sonho. Ela não desempenha o papel de cravelho para a evasão e o mistério, como asseguram alguns pensadores estalinistas. Muito pelo contrário, é o centro do desespero donde toda a esperança renasce, mas pelo caminho tortuoso da cultura.»

“História desenvolta do Surrealismo”, Jules-Françoies Dupuis. Tradução de Torcato Sepúlveda. Antígona. 

novembro 22, 2012

Carta da semana: da nossa rua vê-se o mar



Companheiro de luta Passos Coelho: não se inquiete. Olhe, nós aqui em baixo tudo bem. Começámos, seguindo o seu avisado conselho, a cavar um túnel, mas depois disseram-nos que cavando para Leste, quando muito, dávamos com os cornos em Espanha, não sendo um problema de vento ou de casório, essa solução não nos serve de muito, pois não? Para Oeste? Boa ideia, seguindo a cepa antepassada, mas não temos graveto para barcos e já ninguém dá boleia a ninguém, ainda ponderámos a solução do chileno Super Rato dos Detectives Selvagens do Bolaño e entrar à socapa num cargueiro em Matosinhos, mas somos muitos sabe, mais que as mães, no máximo temos alguns conhecimentos na Apúlia, mas aí os barcos são muito pequenos e há sargaço até dar com um pau dos grandes. Ficámos. Na nossa rua, um dos dois fantasmas da frente esquerda deixou crescer a barba, cada vez nos aparecem menos, se calhar ficam por detrás das cortinas a ver a banda passar e a polir as correntes. Os da frente esquerda baixo, esses, ninguém lhes põe a vista em cima, tornaram-se transparentes, diz-se, após uma formação que fizeram, deixando ali o carro estacionado o tempo todo, à espera que o banco nacional contra os depósitos vazios dos carros lhe dê uma piedosa mão. A Farrusca aparece pouco, a de cima refunde-se, conforme convém, e ficamos a saber que a outra anda assim porque toma os remédios com cerveja. Os diospiros agora são gourmet, cada um vale um cheque compras no valor de um pastel de chaves, ainda por cima com uma cor deslavada de quem anda mal do fígado. É ir às promoções, não é meu caro? Ou juntar dinheiro e comprar um manual de construção naval. Mas não se inquiete, cá por baixo tudo bem.

novembro 20, 2012

Olha, ficamos a saber que:





Já os portugueses (segundo dados de 2008) são “mais felizes aos 66 anos”. Em 2012, não arriscaríamos qualquer idade para o efeito. Com licença. 


[imagem do filme: 2001: Uma Odisseia no Espaço, de Kubrick]

novembro 16, 2012

A nossa rua dava um filme



Companheira de luta Jonet: não se inquiete. Olhe, tá a ver, os nossos vizinhos do lado ainda fazem almoçaradas aos domingos, a familória toda, imagine, chegam e estacionam os carros, não está a ver a frota, uns atrás dos outros, adolescentes e tudo. A coisa dura que dura, às vezes um dia inteiro, não é difícil imaginar a chispalhada, os panadinhos, o rancho para aquela gente toda. Mas isso vai acabar, tá a ver, não tarda. A vizinha Farrusca este ano ainda não trouxe as tangerinas, de diospiros nem vê-los, agora até lhe deu para pintar ela o portão, metade verde, a outra metade esverdeada, aos setenta anos e com bom corpo para trabalhar e ainda se dá a ares, a solteirona, num sobe e desce que cansa, e diz que chega ao dia quinze sem cheta de reforma, um balúrdio de pra aí trezentos euros. A lá de cima, essa é que se queixa, vive de alugueres e de remorsos, acumula reformas coitadita, e lá vai inventando umas obras para ter os homes por perto, já se vê, deu-lhe as cruzes e sem dinheiros para ares, lá vai tomando os que pode, e escutando o que não deve. Os dinheiros, esses, rumina-os o colchão. Do Manso ali da frente diz-se que passou o diabo a quatro depois de amassado, uns anitos em França, quatro palavras novas, umas quantas moradias na rua, as outras na aldeia, vários muretes musgados e duas mudas de roupa, todas iguais. Casa de banho apenas no exterior, a atender nas mijas que vai dando nos arbustos, em competição privada com os gatos. Às vezes permite-se um outro passeio nos transportes públicos, com passe de reformado, que a vidinha está cara. Está, mas não para ele, nem para si, companheira de luta Jonet. Pois não?

[lata]

novembro 13, 2012

As minhas cassetes 95: Velvet Underground



You know her life was saved by rock 'n' roll 
Despite all the amputations you know you could just go out
And dance to the rock 'n' roll station (...)

 “Rock & Roll”, in Loaded (1970). Velvet Underground.

novembro 11, 2012

“O círculo dentro do qual os homens se agitam alargou-se insensivelmente”


Vivemos numa época em que o defeito dos governos consiste em terem feito mais o Homem para a Sociedade que a Sociedade para o Homem. Existe um eterno combate entre o indivíduo e o sistema que pretende explorá-lo e que ele trata de explorar em seu proveito; ao passo que, dantes, o homem, realmente mais livre, se mostrava mais generoso para com a coisa pública.

“O padre de Tours”, Balzac (1832). Tradução de Pedro Tamen. Relógio D’Água

novembro 08, 2012

O Tio está de volta: é fabuloso

(GP produções)

O Tio foi em viagem, o Tio anda em viagem, o tio flana por aí, e está de volta aos treinos. Ora, “eu não sou eu nem sou o outro, / sou qualquer coisa de intermédio”, roubando as palavras a Mário de Sá-Carneiro, sem dúvida “pilar da ponte de tédio / Que vai de mim para o Outro”, mas pode não ser bem assim. De qualquer modo, podem seguir o Outro AQUI. Ou então apanhá-lo na barra lateral deste albergue inútil: está lá em cima algures. 

novembro 07, 2012

Ora diga lá isso outra vez




Através da cortesia da amizade, tivemos acesso a esta missiva da FCT (Fundação para a Ciência e Tecnologia), baseada num despacho da Secretária de Estado da Ciência. O assunto em causa (segundo se depreende), genericamente, a acumulação de bolsas com trabalho remunerado, não será aqui alvo de apurada análise, o que ressalta é o texto. Todo um tratado de linguagem e soberba burocrática, de vazio institucional, na mais fina tradição do armanço obtuso do direito lusitano. Um exemplo de clareza:


Vimos pelo presente meio informar V. Exas. que, relativamente à questão em assunto, E NA SEQUÊNCIA DO DECRETO-LEI N.º 233/2012, PUBLICADO NA ÚLTIMA SEGUNDA-FEIRA EM DIÁRIO DA REPÚBLICA, foi nesta data proferido o Despacho que de seguida se transcreve, o qual será publicado em Diário da República:

DESPACHO

"Considerando que o Decreto-lei nº 233/2012, de 29 de Outubro, diferiu o efeito das alterações introduzidas ao Estatuto do Bolseiro de Investigação pelo Decreto-lei nº 202/2012, de 27 de Agosto, no que toca ao reforço do regime de dedicação exclusiva, passando a referida alteração a produzir os seus efeitos apenas no início do próximo ano letivo (2013-2014);
Considerando que o nº 3 do artigo 22º do Regulamento de Bolsas de Investigação da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P. publicado pelo Regulamento nº 234/2012, na 2ª Série do Diário da República, nº 121, de 25 de Junho, limita os termos em que se admite compatibilizar a garantia de exequibilidade do plano de trabalhos aprovado com outras actividades compatíveis com o regime de dedicação exclusiva, estando por isso mesmo materialmente ligado com as normas cuja eficácia foi agora diferida;
Considerando que o referido Regulamento foi, nos termos da lei, objeto de homologação por Sua Exa. a Senhora Secretária de Estado da Ciência;
Dando cumprimento ao despacho de Sua Exa. a Senhora Secretária de Estado da Ciência, datado de 29 de Outubro de 2012, o Conselho Diretivo da FCT, I.P. determina a suspensão imediata da aplicação do disposto no nº 3 do artigo 22º do Regulamento de Bolsas de Investigação da FCT, I.P.
Lisboa, 29 de outubro de 2012

novembro 04, 2012

Afinidades íntimas


«Salvo nas severas páginas da história, os factos memoráveis prescindem de frases memoráveis. Um homem a ponto de morrer tenta evocar uma gravura vislumbrada na infância, os soldados que estão para travar batalha falam da lama ou do sargento. A nossa situação era única e, francamente, não estávamos preparados. Falámos, fatalmente, de letras; receio não ter dito outras coisas além das que costumo dizer aos jornalistas. O meu alter ego acreditava na invenção ou descoberta de novas metáforas; eu, nas que correspondem a afinidades íntimas e notórias e que a nossa imaginação já aceitou. A velhice dos homens e o ocaso, os sonhos e a vida, o correr do tempo e da água.»

“O Outro”, in O Livro de Areia (obras completas, III), J.L. Borges. Tradução de António Sabler. Teorema. 

novembro 01, 2012

O culto dos mortos



«Dizia-se no séc. XVIII: nada de cidades com cemitérios. Dir-se-á no fim do séc. XIX: sem cemitérios não há cidades. Entre as duas atitudes há toda a distância do horror dos mortos conjurado e duma religião nova inventada no intervalo, a nossa, tal como reina nos nossos cemitérios de hoje, para onde arrasta as multidões de Novembro e os piedosos visitantes de luto do dia-a-dia.»

“Sobre a História da Morte no Ocidente desde a Idade Média” (pp.132), Philippe Ariès. Tradução de Pedro Jordão. Teorema. 

outubro 31, 2012

Tá tudo, ou falta pintar?


- Tá tudo...


Olha se não parece a assembleia da República: lá está o dormitar relaxado, lá está o sorriso néscio e um outro, maléfico, de quem observa, com gosto, o barco a afundar; e os outros, os que (supostamente) querem chegar às filas da frente, a aquecerem o lugar.

outubro 30, 2012

A avó: o espectro sublime



«Houve então algo que fez estremecer os marceneiros, que foi ver a velha Lorrain, aquele espectro sublime, de pé à cabeceira da sua menina. O terror e a vingança insinuavam as suas chamejantes expressões em milhares de rugas que lhe franziam a pele de marfim amarelecido. Aquela testa encimada de esparsos cabelos grisalhos exprimia a cólera divina. Com aquele poder de intuição que é próprio dos velhos perto da sepultura, lia toda a vida de Pierrette, na qual, de resto, pensara durante a viagem. Adivinhou a doença de rapariga que ameaçava de morte a sua menina querida! Duas grossas lágrimas penosamente brotadas dos seus olhos brancos e cinzentos, a que os desgostos haviam arrancado pestanas e sobrancelhas, duas pérolas de dor formaram e lhes transmitiram uma assustadora frescura; foram engrossando e rolaram-lhe pelas faces ressequidas sem as molhar.»

“Pierrette” (pp. 127), Honoré de Balzac. Tradução de Pedro Tamen. Relógio D’Água.

outubro 28, 2012

Aqui é mais apeadeiros, até ver, mas temos os 10 milhões de baixo


«Estamos, com efeito, em plena Book-Season, a estação dos livros.
Estes dois meses, Setembro e Outubro (e eles merecem-no, porque, como cor, luz, repouso, são os mais simpáticos do ano) têm acumulado em si as mais interessantes seasons, as estações mais fecundas da vida inglesa.
A London-Season, celebre estação de Londres, quando a Aristocracia, maior e menor, os dez mil de cima, como se dizia antigamente, o folhado, como se diz agora, recolhe dos parques e palácios do campo aos seus palacetes e jardinetes de Londres – passa-se em Abril, Junho, Julho, verdade seja. Mas essa é uma vã e oca estação de trapos, de luvas de vinte botões, de lacaios, de champagne, de batota e de cotillon. Enquanto as outras!...
Olhem-me para estas sábias, úteis, viris, solenes seasons, que abundam nestes dourados meses de Setembro e Outubro. Isto sim! Aqui temos, por exemplo, a Congress-Season, a estação dos congressos. Que espectáculo! (...)»


“Acerca de Livros”, in Cartas de Inglaterra.
Eça de Queirós. Europa-América.

outubro 24, 2012

Como sabemos, “todo o mercador aspira à burguesia”, vai daí, os primos:


«Rogron e Sylvie, estas duas máquinas sub-repticiamente baptizadas, não possuíam, nem em germe, nem em acto, os sentimentos que conferem ao coração a sua vida própria. Por isso, aquelas duas naturezas eram excessivamente fibrosas e secas, endurecidas pelo trabalho, pelas privações, pela memória das suas dores durante uma longa e rude aprendizagem. Nem um nem outro lamentavam qualquer infelicidade. Eram, não implacáveis, mas intratáveis para com as pessoas em dificuldades. Para eles, a virtude, a honra, a lealdade, todos os sentimentos humanos consistiam em liquidar as letras regularmente. »

“Pierrette” (pp. 28), Honoré de Balzac. Tradução de Pedro Tamen. Relógio D’Água.

outubro 23, 2012

Tínhamos encontrado Cesárea apenas para lhe trazer a morte


Lupe disse-me que somos os últimos real visceralistas que restam no México. Eu estava estendido no chão, a fumar, e fiquei a olhar para ela e disse-lhe não me lixes.

“Os detectives salvagens”, (pp.622), Roberto Bolaño. Tradução Miranda das Neves. Teorema/leya.

[mata(dor)]

As minhas cassetes 93: Felt (bom dia)

I've spent my life inside of a cell
With no doors
Just four walls
Like living in hell
I've chickened out of things in the past
But now i know
When death calls
I'll be ready to go
And i said it's good morning
There's a new day dawning
Good morning to you
To you

outubro 22, 2012

Uma carta aberta aos sportinguistas


O Inútil recebeu na sua padaria (por e-mail), uma carta, de um leitor devidamente identificado. Fica aqui a  sua transcrição na íntegra:

«Uma carta aberta aos sportinguistas

Consegui ver mais de quarenta e cinco minutos do jogo (de ontem) sem me distrair muito. Note-se. Por momentos, alguns momentos, minutos ou mesmo segundos, parecia um jogo da liga dos campeões, tal a intensidade - estamos a falar de segundos -, tal a aventura psicológica que dramatiza qualquer lance, tal a incerteza quântica do marcador, e essa incerteza do marcador é que é o busílis, o caralho do nó górdio. “Mas quem é aquela equipa que está a jogar contra o Sporting?”- perguntava um extraterrestre, a quem tinham contado as ufanas histórias de jornadas de luta leoninas, as épicas todas, o sofrimento enlevado, “mas quem é aquela equipa?”, gritava já o extraterrestre, dilacerado pela dúvida e pelos pontapés do meio da rua (sem marcação) de um gajo chamado Pablo, quem sabe Pablito, para os amigos.  Mas tivemos oportunidades: ouvi bem. Pudera, mais faltava, não as termos. A questão pertinente é o quem pode e não o quem quer. A incerteza existe, é um jogo, mas a doutrina do quem pode ensina-nos a perspectivar, a construir cenários, e para isso, para poder, impõe-se identificar, em primeiro lugar, as próprias fraquezas, depois as fraquezas dos outros, e só depois se enfatizam as potencialidades, mas estas últimas, devem apenas ser reconhecidas e veladas pelos timoneiros, aos outros os bicos de pés podem ser nocivos. Os timoneiros devem ser em número reduzido e circunscrito, e daí para baixo, ou até para o lado, qualquer açaime é aceitável na conjuntura definida. Depois disto, que não é pouco, poderemos eventualmente começar a falar de jogo, como se diz?, propriamente dito.

Saudações sportinguistas,
Exuberante da Silva »


[maradona]

E agora algo completamente diferente: o próximo treinador do Sporting será Dominguez?



Estamos a falar do cenário mais lógico, consentâneo com o desvario recente, na senda dos bons resultados. Com licença. 

outubro 21, 2012

O tio era: “a imagem vaga de um vasto vinhedo batido pelo granizo”


«Rogron gostava da boa mesa e de ser servido por raparigas bonitas. Pertencia à seita dos egoístas de comportamento brutal, dos que se entregam aos seus vícios e fazem as suas necessidades com todo o descaramento. Ávido, interesseiro, pouco delicado, obrigado a satisfazer as suas fantasias, foi comendo os seus lucros até ao dia em que lhe faltaram os dentes. A avareza manteve-se. Na velhice, vendeu a estalagem, ficou, como se viu, com toda a herança do sogro, e retirou-se para a casinha da praça, comprada por tuta e meia à viúva do tio Auffray, avó de Pierrette.»

 “Pierrette” (pp. 23), Honoré de Balzac. Tradução de Pedro Tamen. Relógio D’Água.

[brasserie]

outubro 19, 2012

Manuel António Pina (1943-2012)


«Ninguém me roubará algumas coisas,
nem acerca de elas saberei transigir;
um pequeno morto morre eternamente
em qualquer sítio de tudo isto.

É a sua morte que eu vivo eternamente
quem quer que eu seja e ele seja.
As minhas palavras voltam eternamente a essa morte
como, imóvel, ao coração de um fruto.

Serei capaz
de não ter medo de nada,
nem de algumas palavras juntas?»

Manuel António Pina, “O Medo” in Nenhum Sítio

Momento Tricky




outubro 18, 2012

A padaria Portugal



Não sei porquê, dei comigo a pensar no Venitchka, anti-herói e alter-ego de Erofeev no seu “De Moscovo a Petuchki”, que nas suas deambulações nunca encontra o Kremlin, acabando por ir dar sempre com as fuças à estação de Kursk, pois a minha estação de Kursk é a padaria, e por mais voltas que dê, acabo sempre por lá esbarrar. Numa dessas, o Careca dissertava às moças, de um lado a menina balcão, de outro, a menina Joli, morena, um moreno de praia, nada de solários ou de base, segundo a própria. O Careca animava-se, reafirmava o vício do dinheiro como o supremo dos vícios, nunca saciado, comparando-o, claro está, ao sexo, e num murmúrio, com as mãos em concha, explicava condescendente que, mesmo no sexo, chega um momento em que estás saciado, não é?, dizia entre risinhos. E as meninas riam, também.
Entra o Silva, cheira-lhe ao Mendes. Já aí estão. O Silva entre o boa tarde e a Super, murmura um arrastado impressionante e, como não obtendo resposta, remata que as manifestações dos últimos tempos são manifestações de crédito, eu sempre disse, obviamente de crédito, eu sempre disse, pelo menos, as auto-estradas existem, já o buraco do BPN não se vê, é o buraco sem fundo, acrescenta, picando o Mendes, que riposta que o problema é o 26 de Abril, mas sem referir de que ano, acrescentando um enigmático tem que se ensinar, ao que o Silva contrapõe o clássico eu sempre disse. A menina Joli termina o segundo galão, repetindo o seu moreno de praia, e a menina balcão acumula um claro, claro atrás do outro, um claro de assentimento geral que o Careca nem repara, continuando a sonhar alto, insaciável.
De saída, recordo o Tabuletas e os seus fogos, e por momentos penso que a questão do pão branquinho e mal cozido não é apenas um problema de padaria pós-moderna, nem da qualidade dos produtos ou dos padeiros em parcimónias de moina, as pessoas simplesmente gostam assim, que se há-de fazer. 

outubro 17, 2012

A sua teoria era estapafúrdia, e não resistia ao menor exame?


«Tudo tinha começado, segundo Pele Divina, com uma viagem que Lima e o seu amigo Belano fizeram ao norte, em princípios de 1976. Depois dessa viagem, ambos começaram a fugir, primeiro pela Cidade do México, juntos, depois pela Europa, já cada um por sua conta. Quando lhe perguntei o que é que os fundadores do realismo visceral tinham ido fazer a sonora, Pele Divina respondeu-me que tinham ido à procura de Cesárea Tinajero. Depois de viver uns anos na Europa, Lima regressara ao México. Talvez achasse que já tudo estava esquecido, mas os assassinos materializaram-se uma noite, depois de uma reunião na qual Lima tentava reagrupar os real visceralistas, e ele teve que fugir. Quando lhe perguntei porque é que alguém havia de querer matar Lima, Pele Divina disse que não sabia. Tu não viajaste com ele, pois não? Pele Divina assentiu. Então como é que sabes essa história toda? Quem é que ta contou? Lima? Pele Divina disse que não, que quem lha tinha contado fora Maria Font (explicou-me quem era Maria Font) e que lha tinha contado o pai. Depois disse-me que o pai de Maria Font estava num manicómio. Numa situação normal, ter-me-ia desatado a rir ali mesmo, mas quando Pele Divina me disse que quem tinha espalhado o boato era um louco, senti um calafrio. E também senti pena, e pensei que estava apaixonado.»

“Os detectives salvagens”, (pp.358-359), Roberto Bolaño. Tradução Miranda das Neves. Teorema/leya.

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