abril 29, 2008

Do tempo único das padarias

“Parece que o tempo está mono”, dizia a menina à entrada da padaria para encetar conversar com outra senhora. “huum”, terá aquiescido esta, não sem a outra avançar que “ao menos a chuva parou”. Nisto e naquilo, carreguei a carcaça (a minha) para a chuva (que era democraticamente para todos). Pensei que a menina de meteorologia não percebia nada, mas da “cerimónia” da conversação para passar tempo era já senhora. Continuei. O dia estava triste e sensaborão, infinitamente demorado e a cheirar a pão.

abril 26, 2008

Com este sol todo entardeço assim

O sogro morreu e deixou pouca coisa; ele indignou-se com isso, montou uma fábrica, perdeu nela algum dinheiro e retirou-se para o campo, onde pretendeu desforrar-se. Mas, como não entendia nada de agricultura do que de chitas, e porque montava os cavalos em vez de os pôr a trabalhar, bebia sidra às garrafas em vez de as vender em barris, comia as melhores aves de capoeira e engraxava as botas de caçar com o toucinho dos porcos, não tardou a aperceber-se de que mais valia abandonar toda a especulação.

”Madame Bovary” Gustave Flaubert

abril 23, 2008

E um dia mundial da couve-flor?

No dia mundial do livro não leio. Não leio livros a não ser profissionalmente. Leio o pasquim do dia e os murais nas paredes. De resto, escrevo, trabalho, trabalho e escrevo. Um pensamento leva-me ao mar. Mas não leio. Os livros não precisam de dia mundial. Os dias, sim, precisam de livros.

Hoje entardeço assim na twiligh zone

De repente, ou se calhar, não tão de repente quanto isso, a machina ganha vida e apodera-se, com um sorriso, da tarde toda. Não recuo. Atiro-lhe uma dedada mal sentida e resmungo-lhe em troca, com um sorriso desmaiado: ”máquina com vida própria? Que déjà vu bafiento”. Sentei-me e escrevi: “De repente, ou se calhar…"

abril 21, 2008

Esgoto a céu aberto

No anjo nunca se fala de política em concreto. Muito menos da politiquice. Esta cerca-nos, invariavelmente, por todos os lados, numa miséria de esgoto inoxidável. Impõe-se não a alimentar em demasia pese a sua inutilidade actual, e por isso mesmo, apenas por isso, nos é cara. Os últimos dias têm-se revelado de uma inaudita miscelânea de imundícies a céu aberto. E não me refiro apenas ao tal de “maior partido da oposição”. A gangrena, tema-se, não se limitará apenas a um membro. Como diz um amigo meu “este país não se cumpre”.

Apodera-se de mim uma nostalgia selvagem, do tempo, ou sem ele, mas que perdura na memória, do pensamento. Já existiram (em épocas não muito remotas) políticos capazes de tal feito.

abril 20, 2008

Hoje amanheceu assim na Twilight Zone

Acordei com o Antonin Artaud esculpido na cabeça. Recusei a regueifa mas não uma infusão de Tília. Por aqui diz-se chá. Procurei um poema e encontrei-o no armário. Continua a chover fora de mim. Está-se bem em Babilónia ao domingo de manhã. Coisas de rufia.

abril 16, 2008

A anoitecer

Anoiteço com Robert Walser:
Aprende-se muito pouco aqui, há falta de professores, e nós, rapazes do Instituto Benjamenta, nunca seremos ninguém, por outras palavras, nas nossas vidas futuras seremos apenas coisas muito pequenas e subalternas.
Anoiteço ainda mais, e dá-me para me abster do mundo lá fora. Chove. Chovo com a chuva de encontro à vidraça. Nenhum sinal de que sairemos daqui tão cedo.

abril 14, 2008

Às voltas na noite

Estava a magicar em ver o mundo do meu canto do mundo, e dei por mim sem mundo para ver no meu canto, que já não fosse mundo para se ver. Tentei, à força, adjectivar o meu mundo e conforme, consubstanciar o outro. Acordei, não transformado num gigantesco insecto, mas, num caso real e concreto, de adjectivação possível. Bebi água, já de saída de um mundo para o outro, sem resultados visíveis a olho nu. Voltei ao whisky, sem pejo na garrafa.

abril 13, 2008

abril 10, 2008

Ainda sem amanhecer verdadeiramente...

“Ah”, disse o rato, “o mundo cada dia fica mais apertado. A princípio era tão grande que até me metia medo, depois continuei a andar e ao longe já se viam os muros à esquerda e à direita, e agora – e não passou assim tanto tempo desde que eu comecei a andar – estou no quarto que me foi destinado e naquele canto já está a armadilha em que vou cair”. “Tens de inverter o sentido da marcha”, disse o gato, e comeu-o.


"Pequena Fábula"
Franz Kafka

in "Párabolas e fragmentos"
Assirio & alvim

abril 08, 2008

Um nada cheio de vozes

Sempre fui um paroquiano da marquise. É um facto corroborado por um amigo meu. Nunca fui de festas, embora fosse a todas, com excepções consagradas na regra. Gosto de beber dez copos apenas com quem me apetece e, variadíssimas vezes, em lugares que não lembram ao diabo, embora este por lá apareça.
Ontem, entre dois copitos de whisky, revisitei “Bande à part” (1964), de Jean-Luc Godard, sem me recordar à melhor de duas, quando o teria visto. Fui à festa.
Há uns anos via os filmes todos. Este recordei-o ontem como um dos que, se calhar, não queria (re)ver. Fazia (o filme) todo o sentido, nos idos de 1964. Faria? A penugem cinematográfica regurgitava um novo olhar, espelhado depois no cinema americano, dizem. Recordei o Estrangeiro de Camus, apenas no desejo imediato do instinto. Alguma literatura, sem comensais, dormitava nas personagens, a literatura a carvão, rebocando um cinema. Prefiro, como sempre, os Italianos, e o Pierrot le fou
Sem desligar o DVD, intrometi-me em conversas deveras triviais. Até ao fim.

abril 07, 2008

Hoje amanheci assim na Twilight Zone

Entre as resmas de livros que acompanham os meus dias e noites, apetece-me escrever algo sobre “O mal de Montano”, de Henrique Vila-Matas, escritor catalão, editado pela Teorema. Na verdade, não me seduz tanto falar sobre o livro mas sobre literatura. Talvez nem isso. O mal de Montano é o mal de Literatura, espécie de enfermidade literária de que muitos padecem e que pode assumir várias formas. Mais não digo.
Talvez tenta despertado para o mal da literatura ao ler Pessoa e a sua Tabacaria. Era um adolescente e um desavindo da vida. Nada novo. Planeava por esses dias arrojados roubos de livros. Já estava enfermo.
Refira-se, para que conste, que o mal vem de trás, e não será talvez um mal de literatura, mais um mal dos livros, solidamente erigido na banda desenhada da infância, nas trocas de livros ao fim-de-semana com os tios e com os amigos. Um apego doentio ao objecto, não apenas ao seu conteúdo. E um desejo desvairado que me escolta até aqui, no momento preciso em que escrevo. E escrevo o mal da leitura. Sou enfermo de ler e ler. Leio por vício e por prazer, e nos interstícios do vício, releio-o, outras vez. Leio em todo o lado e por todo o lado, leio tudo. Gosto particularmente dos panfletos que acompanham os medicamentos. São de leitura obrigatória.

abril 05, 2008

Cassetes piratas

Encarei a tarde de sol com umas arrumações e os IN THE NURSERY (ITN) como fundo musical, mais concretamente L`Esprit, um álbum da década de 1980, que me conduz infalivelmente ao aconchego da distância. E pergunto: “que tenho eu a ver com esta porra que me rodeia?... Eu cresci a ouvir isto”.Nada de novo, a não ser talvez o facto (insano ou apenas desenquadrado, dir-me-ão alguns), de o confeccionar em cassete. Nem me apercebo, quando o faço, da anacronia do gesto. Em tempo de coleccionadores ou ajuntadores de músicas no ipod, - imagine-se que a cassete também já foi objecto de campanhas para não “matar” (sem rir) a música (ou o sistema?); veio-me à memória alguém conhecido (algo melómano) que esta semana, ao referir-se aos discos que já não escutava, porque o gira-discos (assim mesmo) não funcionava, me confessava que os havia “passado”. “Para CD ou DVD, ou recompras-te?”, avancei eu, já distraído e quase a mudar o poiso da conversa. “Não, não, passei-os para cassete”, respondeu.

Hoje amanheci assim na Twilight Zone

abril 03, 2008

De costas forradas

Quero lá saber da benesse das matronas sobre os meus dias. E vá lá, ainda tenho um bom cão para a todas esfolar de proveitos. Quero lá saber dos impostos a sabre de obtusos, com o conluio ainda que malfadado dos inertes que bovinam nos nossos quintais. Mas porra, dizer mal, não reconhecer as matreirices técnicas de um Cristiano Ronaldo, a vomitar-se de futebol, e a borrifar-nos de arte, principescamente e à borla na TV dos nossos descontentamentos. Não admito.
Lá pelo rapazote não conseguir elaborar o mais leve propósito de uma ideia, isso nada significa quando sobejamente nos dignifica no insólito da sua arte. Inveja de alguns cabrões dessa Europa, aristocratas malfadados e mal desovados.
Mais a mais, a politicada (e não só) cá do burgo, não destila uma ideia há séculos e lá vai, no andor, às costinhas dos sobrecarregados.
Acabei de ver o Sporting, e com a procissão no adro, não se imagina melhor que um vai-não-vai de tormentas, a nossa carga em carrinha de caixa aberta.

abril 01, 2008

Os dias quase noites

Renovo os dias com alguma música. Cada vez menos. Escutei, entre o trabalho da forca, ao computador, e um arranjinho sublime de frango assado com tomilho, cuja duração não inferior a 1h30m, cumulei com um arroz branco de cenoura e uma salada rápida mística; escutei, digo, parte do novo Portishead, Third.

Com um branco fresquinho em fundo baço, admirei a nova textura melódica. Dir-se-ia que renovaram em crescendo. A voz, menos óbvia e mais aberta, ladrilha novos caminhos. É claro que continuei no branco fresquinho, admirando aos poucos, as articulações aviárias do repasto suculento. Ainda lancei um …mas…quando qualquer coisa me rememorou um todos os dias. Terei mudado a estação. Ou quem sabe, escolhi um CD. Nada mais certo que escrever isto ao som de um Whisky…

Hoje amanheci assim na Twilight Zone