dezembro 29, 2012

Carta da semana: 2012



Companheiros de luta do governo: não se inquietem.
Aqui só visto: na rua e arredores é um correr de carros que nunca mais acaba, montes deles até tem pequenas mensagens escritas, como TRATA-SE, e depois um número de telefone, este fenómeno também é observável em estabelecimentos comerciais e habitações, embora com variantes expositivas, deve ser aquela coisa das redes sociais. Por falar em rede, o que vier é peixe, a malta até está a pensar em juntar o útil ao agradável e chamar à equipa do bairro os Trinca Espinhas (também pensamos em Pele&Osso), atendendo às dietas malucas que fazem esses tresloucados dos desempregados e pessoal do ordenado mínimo e, para além disso, temos que seguir os sábios conselhos da companheira de luta Jonet e habituarmo-nos a petiscar as espinhas, para sabermos como a vida é dura. Na rua, de resto, vai tudo de vento em popa, recordar-se-ão dos oleados que compramos nas promoções para irmos à pesca?,  – seguindo os conselhos do companheiro de luta Cavaco – saibam que também os aproveitamos como gabardine para a chuva e como colete para o carro. À noite, às vezes, fazemos umas corridas doidas, vestidos com os oleados amarelinhos a servir de coletes reflectores, parece uma procissão, tão linda, há mesmo malta que não os tira nem para dormir, aquilo dá um pijama muito jeitoso, principalmente em casas como as nossas, com muita humidade. De resto os vizinhos andam meio desencontrados, a Farrusca nem a vemos, deve andar a estourar a reforma de trezentos euros, há até quem diga que já marcou mesa no réveillon do Hotel Altis, a desvairada. Não sabemos é se deixam entrar malta vestida de oleado. Mas pode ser uma festa temática, nunca se sabe. Bom ano.

[fotograma de Metropolis]


dezembro 28, 2012

Corte e costura



Nós Tivemos as Mães de Bragança, verdadeira instituição da cueca de gola alta, confraria do cinto de castidade, associação protectora dos maridos embruxados e desencaminhados. Nuestros hermanos, aqui ao lado, presenteiam-nos com as Mães de Valência, cujo estilo desprendido e arrojado se alia a um espírito empreendedor. Outra cepa.

dezembro 26, 2012

"O que um morto deixa não é nada"



– De certeza que atiraram a arma à lagoa. – O comissário falava, meio perdido. – Há muitas facas no fundo do rio. Quando era pequeno mergulhava e encontrava sempre…
  – Facas?
 – Facas e mortos. Um cemitério. Suicidas, bêbados, índios, mulheres. Cadáveres e mais cadáveres debaixo da lagoa. Vi um velho, um dia, o cabelo comprido e branco tinha continuado a crescer-lhe e parecia um tule na água transparente.
 – Deteve-se. – Na água o corpo não se corrompe, a roupa sim, por isso os mortos flutuam nus entre as ervas. Vi mortos pálidos, de pé, com os olhos abertos, como grandes peixes no aquário.


“Alvo noturno” (pp.61-62), Ricardo Piglia. Tradução de Jorge Fallorca. Teorema/leya.

dezembro 22, 2012

O nada a avançado centro



A verdadeira alienação, a única que coloca um problema a Stirner, é a sua própria, enquanto sujeito existente, enquanto mónada. Nunca é a do colectivo humano. Deste modo, para quê suprimir a alienação religiosa, se é para logo a substituir pelo fetichismo do Homem, ou seja, do Outro, forma de idolatria mais refinada, sem dúvida, mas igualmente alienante, se não mais? De facto, «o divino olha para deus, o humano olha para o homem. A minha [Stirner] causa não é divina, nem humana […] não é geral, mas única, tal como eu sou único». Por isso, a recusa de todos os atributos genéricos, de todas essas entidades abstractas que são a Natureza humana, a Essência do homem, etc. O regresso ao Único, ao Eu sem conteúdo, ou seja, a nada: “fundei a minha causa sobre nada”…Mas este nada é o centro de tudo.

“História do Anarquismo” (pp. 145), Jean Préposiet. Tradução de Pedro Elói Duarte. Edições 70. 

dezembro 18, 2012

Momento Chullage: a música ainda é uma arma

Cartografias do espaço vazio



Enquanto avança pelo longo corredor da ala ocidental do casarão, sente a sua solidão com mais intensidade, mas também com mais prazer que nunca. O prazer é absolutamente novo para ele e parece-lhe que está ligado à dor de avançar sozinho pelo corredor familiar. Enquanto continua a caminhar por esse corredor, avança tão profundamente na análise desse novo prazer, que acaba por temer a sensação de entrar em terreno desconhecido, no espaço onde se encontram os limites  da sua capacidade de pensar. É como se tivesse chegado ao sítio onde já não pode ir mais além pensando. Sente uma breve vertigem, como se já estivesse a avançar pelo corredor que conduz ao espaço vazio que existe fora de toda a família humana, a começar pela sua. Desde que o operaram, tem sentido, dia a dia, uma estranha expansão dos recantos ou, melhor dito, das células do seu cérebro.

“Desaparece Daqui” (pp. 132.133), in Exploradores do Abismo, Enrique Vila-Matas. Teorema. Tradução de Jorge Fallorca. 


dezembro 17, 2012

Fuga para a vitória



No princípio era a concorrência. Proliferam a granel os players. O consumidor escolhe. O consumidor confunde-se: é para o seu bem. Entretanto anda de um lado para o outro qual barata tonta, para ver o que está mais barato (tonto). “A gente passeia, e ao mesmo tempo vai sabendo das coisas”, diz, quando lhe perguntam se faz as contas às passeatas. Ali ao lado já as (supostas) concorrentes se arranjam umas com as outras. Cá para fora simulam-se guerras (propagandísticas). Após se entreterem a fazer o seu papel de lebre na corrida, umas desistem. Ficam pelo caminho: ora porque são compradas, ora por que fazem parte do mesmo grupo, ora porque já ganharam o que tinham que ganhar e voltam para a terrinha. Ora porque nunca existiram. O consumidor está agarrado e habituado à festa: afinal era apaparicado, ele é que escolhia. Depois chegam as fusões. A coisa aquece. Ficam dois competidores. Às vezes apenas um, partilhado em dois. O inimigo de ontem, o monopólio, é o amigo encoberto de hoje. E o consumidor já sabe: é tudo para o seu bem.  

dezembro 16, 2012

Sporting: sem espinhas?


Ontem lá conseguimos empatar. Um destes dias, ainda conseguimos ganhar, vão ver. Diz que não custa nada. Entretanto, o Sporting continua a ser um verdadeiro centro de emprego em Portugal. Para além de continuar a dar trabalho a seres humanos que juram a pés juntos que ainda vão aprender a jogar futebol, mas que recebem como se já o fizessem, para além de continuar a pagar a antigos treinadores que vai generosamente substituindo (e assim aliviando a segurança social), para além de tudo isto, ainda continua a contratar. E ainda dizem que está em falência técnica. 

[sardines]

dezembro 10, 2012

Brasileiro, português de Angola


O negócio, para citar a irmandade brasileira, tem jeito não. Já se sabia da descabelada erosão dos nossos cérebros perpetrada no desígnio (mais um) da ortografia, chamando-se-lhe acordo, revelando-se na hora, eufemismo do mais fino quilate. Outros negócios, esses sim, florescem: a irmandade angolana, a compras, RTP, jornais, bancos, insignificâncias legitimadas na mais pura das convicções possidentes (petróleo e diamantes), tudo ao desbarato, que isto é terra de mão estendida. Essa mão estendida encobre outra: a mão escondida. A que acode aos negócios, uns e outros, sempre os seus, os mesmos que nunca colidem com os outros, encaixada na retórica encapotada do controlismo democrata, tudo para nós, nada contra nós. Assim vai a RelvasTP negociando e erodindo quem pega onda diferente, e assim vai o controleiro que se descontrola na aula e solta o gabinete de monotorização dos blogues, corolário de meses a roer-se por não se saber de tão distinto empreendimento. É assim a inteligência que nos pastoreia: de que vale espiar se ninguém sabe? No dito da irmandade brasileira, tem eufemismos para tudo, não? Mas se calhar vamos é ter um pai de santo… angolano. 

[imagem de Mana Neyestan]

dezembro 09, 2012

“Por mais que reine, o povo soberano nunca governa”


It's life, John, but not as we know it.

«Os libertários foram os únicos que compreenderam que o princípio de autoridade não perdeu nada da sua força – muito pelo contrário – em democracia. (…) De facto, o poder democrático tem um efeito duplo. Por um lado, ao apresentar-se como a expressão da vontade geral, tem facilidade em manter o indivíduo sob a dependência da lei, considerada oriunda desta vontade indiscernível, e o Estado é visto como representante do interesse geral face aos interesses particulares. Por outro lado, o governo democrático não tem pejo em afirmar-se como defensor natural dos direitos imprescritíveis da pessoa humana no seio da colectividade. O círculo fecha-se. 
Anónimo e impessoal por definição, o poder democrático parece acima de qualquer suspeita. Como desconfiar de sistema que se refere constantemente à vontade de todos? No entanto, é inquietante vê-lo monopolizar assim o querer da Totalidade. Sendo o Todo considerado superior aos elementos que o compõem, o interesse geral deve sobrepor-se aos interesses particulares. De tal modo que, segundo este princípio, o governo democrático, único interprete desta totalidade fictícia, se arroga o direito pessoal de definir e determinar os limites do interesse geral. Cioso desse direito exclusivo, tende a considerar ilícito qualquer interesse particular, cuja existência, numa sociedade igualitária, não passa de uma tolerância provisória, concedida sob reserva, em todo o caso severamente controlada e cada vez mais precária. De direito, nada deve subsistir por si mesmo fora da Totalidade, pela qual o poder democrático é o único a responder. (…) Actualmente, a necessidade de tudo controlar leva-o à taxinomia: ficheiros, inventários, catálogos, etc. Com a informática o imperium vê-se finalmente na posse de um instrumento com que nem ousava sonhar.»

“História do Anarquismo” (pp.74-75), Jean Préposiet. Tradução de Pedro Elói Duarte. Edições 70.

Nota: registe-se que a primeira edição (em França) data de 1993.


dezembro 08, 2012

As minhas cassetes 96: Talking Heads




I can't seem to face up to the facts
I'm tense and nervous and I can't relax
I can't sleep, 'cause my bed's on fire
Don't touch me I'm a real live wire


"Psyco Killer", in Talking Heads (1977), Talking Heads.

dezembro 06, 2012

Carta da semana: e quem apanha as canas?


Companheiro de luta Cavaco: não se inquiete. Companheiro de luta Cavaco?... ei, companheiro de luta Cavaco? Ah!, não faz mal, bem sabíamos que o companheiro não andava por aí, consegue estar por perto sem andar por aí, ou por aqui, e sem ver, quer dizer, a olhar sem ver, é um sinal de que o silêncio germina mesmo nos locais mais inóspitos.  Não será o mesmo silêncio dos nossos dentes a rasgar a pele, nem o silêncio das noites sem dormir, esse silêncio amplo que nos acolhe em cachos e cuja membrana se cola ao corpo resistindo ao duche e à pedra-pomes, vossa excelência exala essoutro silêncio mofento das penumbras mais recônditas, dos acatares sombrios da mais tenebrosa indiferença, vossa excelência, creia-me, está tão imbuído do tempo antigo que o confunde com as autoroutes por vós tão agigantadas e que nos levam a lado nenhum. Os conselhos do companheiro, não duvide, foram escutados aqui na rua: já não escondemos as adulações mas em breve esconderemos a realidade. A vizinha de cima lá vai plantando flores, mas como ninguém (até ver) as come, entremeia com tangerinas e limões que não colhe, e além estruma um talhão com meia dúzia de couves e alfaces. O da frente lá vai mijando nos canteiros sempre que pode, demarcando o seu território de meia rua, para ele nada melhor que os produtos agrícolas made in continente ou made in pingo doce, fresquinhos e encerados, que a vida custa a todos. A Farrusca já não aparece, anda a cavalo pela sua propriedade de 20 metros quadrados a tentar perceber o que de melhor ali se dá, seguindo o conselho do companheiro Cavaco de voltarmos à lavoura, essa mesma que o companheiro empacotou em remessas enviadas com a nossa alma nos idos noventa, para a tal de Europa, quando éramos modernos. Os fantasmas da frente esquerda-cima confundem-se com reposteiros de época, parece que vão tentar a sorte como figurantes de um filme do Oliveira. Os outros aguardam os saldos para comprar oleados: vamos todos dedicar-nos à pesca. Não se inquiete, seguimos os seus conselhos. Quem anda à chuva molha-se.  

dezembro 04, 2012

O Eça não tem qualquer responsabilidade no sucedido (o calendário dos Maias é lá com eles)


Alguns cidadãos recorreram às mais altas instâncias para saber se a previsão do calendário maia era correta.




“É assim que o mundo acaba”, é título de uma novela de James Morrow datada de 1985, aproveitando uma deixa de T.S. Eliot (a uma epígrafe de Nostradamus).

Eis o nosso epitáfio segundo Morrow:

«EM SAUDOSA MEMÓRIA
DAS
PESSOAS
4 500 000 A.C – 1995 D.C
ERAM MELHORES DO QUE PENSAVAM
NUNCA CHEGARAM A SABER
O QUE ESTAVAM A FAZER»

In”Os Finais de Século – lenda, mito, história de 990 ao ano 2000”, Hillel Schwartz.

dezembro 02, 2012

A singularidade insubstituível


«Na dialéctica do universal e do particular, o momento essencial não é definido pela totalidade. A verdadeira essência das relações humanas está, pelo contrário, no indivíduo concreto. Hegel é aqui invertido. É o todo, o Estado, que se torna o momento não essencial da relação dialéctica. O essencial, o valor supremo, o verdadeiro sujeito do direito político e histórico,  a célula biológica e social fundamental que constitui a totalidade e a faz existir animando-a a partir do interior, mais não é do que o indivíduo. O anarquismo começa assim pelo egoísmo (Stirner) e apresenta-se como defensor permanente da liberdade subjectiva.»

“História do Anarquismo” (pp.50), Jean Préposiet. Tradução de Pedro Elói Duarte. Edições 70.