janeiro 31, 2018

Gutembergomania


O psicólogo norte-americano Julian Jaynes afirmou que muito depois do desenvolvimento da linguagem, quando a escrita foi inventada, há cerca de cinco mil anos, a decifração dos signos escritos produziu no cérebro humano uma percepção auricular do texto, de modo que as palavras lidas penetravam na nossa consciência como presenças físicas.
“A cidade das palavras”, Alberto Manguel

A decifração dos signos sempre foi, para mim, uma espécie de milagre. Já não me lembro de não saber ler, de não conseguir operar o milagre da transformação dos signos em leitura, comunicação, de não sentir essa percepção auricular do texto. Gosto de ler e leio tudo: obviamente, livros, jornais, revistas, mas também bulas de medicamentos, publicidade, a informação das caixas dos objectos que compramos, as letrinhas pequenas da pasta dentífrica, a rua toda, estabelecimentos, novas lojas abertas, informação avulsa, coisas perdidas nos dentistas, no barbeiro, eu sei lá. Nunca vou à casa de banho ou à consulta da asma sem (ter) levar alguma coisa para ler.

Só recentemente soube (não procurava saber se existia um nome) que sofria de gutembergomania (talvez o menor - sem desprimor- dos meus vícios), não sei se no grau de FernandoVeríssimo, mas certamente percebendo as suas palavras escritas:

(…) o pânico de estar, por exemplo num quarto de hotel com insónia, sem nada para ler não sei que nome tem. É uma das minhas neuroses. O vício que lhe dá origem é a gutembergomania, uma dependência patológica da palavra impressa. Na falta dela, qualquer palavra serve. 

Actualização


As minhas últimas contribuições no blogue "A Insustentável Leveza de Liedson":

 - No princípio era uma ideia
 - C'um Caneco
 - A procissão já não vai no adro

janeiro 30, 2018

E sobre acumulação de capitais, nada?



Parece que a Assembleia da República propôs ao Governo legislar dobre o denominado "Síndrome de Noé", ou acumulação de animais, coisa que acontece muito por aí, e nem sempre são irracionais. O estado gosta muito de nos tratar da saúde, cada vez mais, aliás,  sempre preocupado em legislar sobre assuntos da moda, comida, sal, açúcar, tabaco, sempre pronto a seguir a crista da onda da actualidade na agenda, desde que não faça grande mossa. Cinquenta anos após o "Proibido Proibir" de 68,  e uns tantos passados sobre o Abril de 74, ninguém acha estranho esta acumulação de proibições, de legislação asséptica, de guardiões da moral e bons costumes, que agora se propaga pelas universidades e pelas artes.

Temos a nossa quota parte de responsabilidade neste síndroma do vazio. Gente que nem sequer estrelava um ovo, deus os livre, coisa de mulheres, anda a brincar aos gourmet, aos fodies, a fazer a apologia da quinoa e de sabe-se lá mais a quê. Mas tudo isto assenta numa espécie de corrida ao fixe, ao cool, mas desprovida de qualquer estrutura, demasiado volátil para preencher sequer o vazio que a sustenta. De qualquer forma, a sociedade assenta hoje numa radical memória de peixe. E cheia de causas. 

Um mosquito no inverno


Estava para ali a fazer umas limpezas e a pensar na morte da bezerra, decidindo-me por meter um CD dos Jesus And Mary Chain,  “Barbed Wire Kisses” (um B-sides and more), comprado sabe lá onde Judas perdeu as botas, há muito tempo atrás (é verdade), quando nisto passa o “psycho candy”.


Eu que bebia copos de absinto (desculpa lá Cesário), perdão, eu que estava a pensar em escrever qualquer coisa sobre os Jesus, a importância do seu primeiro álbum, intitulado Psycocandy (1985), do qual não faz parte o tema psycho candy, quer dizer, ia escrever sobre aqueles anos oitenta, a Escócia, East Kilbride, a sua cidade de origem, uma das New Tows criadas no final dos anos quarenta, fazendo parte da grande conurbação urbana de Glasgow, patatipatá, aquela coisa da transição pós-industrial (ainda devedora da revolução industrial), sabemos que os irmão Reid trabalharam numa fábrica, entre cervejas, e a sua importância na música destes.

Pensava em tudo isso que iria escrever, quando de repente (passava a música), comecei a sentir a ascensão irremediável das lavas do subconsciente, não a ascensão irremediável das lavas do sobreconsciente (isso, sabemos, leva à loucura), de que nos fala Vila-Matas logo no início da sua “História Abreviada da Literatura Portátil”, não, era o subconsciente a fazer das suas, juntamente com a memória mais recôndita, e dei por mim a dançar, o sol entrava todo por ali dentro e eu dançava. Foi então que um mosquito me deve ter entrado no olho, humedecendo-o ligeiramente. Mosquitos em Janeiro? – pensei. Isto anda tudo tolo. E fui ouvir o “sidewalking” que já estava a passar no tijolo da cozinha.  

janeiro 25, 2018

Mark E. Smith (1957-2018)


Os Fall eram Smith e Smith, acho, era os Fall. Ou um Fall. Tive oportunidade de os ver em Coimbra e anos depois em Barcelos. Um amigo (agora distante - mais um) meu de Barcelos era um incondicional com todos os discos (em vinil) da banda. Quantos? Ninguém sabe. Smith compunha e editava à tripa forra, quase tão depressa como despedia companheiros da banda, ou estes tiravam bilhete de moto próprio. Em vinil tive apenas um (vários em cassete e CD) disco dos Fall: The wonderful and frightening world of the fall. É um bom epitáfio. 


janeiro 24, 2018

E assim acontece


Tem dias. Mais coisa menos coisa, casa trabalho, comer, beber, às vezes lá calha; trabalho casa, comer beber, às vezes lá calha. Dos arquivos recentes consta uma única intoxicação etílica e alguns prazeres avulsos. Destes, destaque para a série Gomorra (2ª e 3ª temporadas), devorada com a placidez de um felino durante o último mês e meio. Cortesia da RTP2, sem espaço nos canais (americanos) de cabo, foi-se consumindo diariamente (para nosso deleite) sem deixar grande rasto (o que abona em seu favor) à sua passagem. Apenas recentemente no programa da Antena 3 Bons Rapazes ouvi alguma referência à série, na palavra de Álvaro Costa (quem mais?), qualificando-a como imperdível, bem temperada com violência sem paliativos e boa música, claro. Parece que os Massive Attack  andam atentos ao Hip Hop que se faz em Nápoles. Depois do livro, do filme, e da 1ª temporada (passou na Rtp2 em 2017), aguarda-se uma 4ª, para saber se o Ciro se fica, mortinho da silva, no fundo do mar. Confio no Sangue Azul.

Entretanto, após desenfastiar um pouco com o Sinal dos Quatro do Conan Doyle, voltei às lides e a Mathias Enard. Tinha ficado maravilhado com o seu “Zona”, uma viagem de comboio, com história, geografia, literatura, mescla de ficção e realidade histórica, verdadeiramente genial e apetitoso. Foi devorado com a dignidade possível. Reza a lenda urbana (quem o diz é um amigo livreiro), que eu ajudei e, muito, a catapultar as vendas do livro aqui por Braga. Avancei para o “Fala-lhe de Batalhas de Reis e de Elefantes”, lido com prazer, desaguando agora no seu “Bússola”.

Sabemos que o Sr. Mathias é um profundo conhecedor do Oriente, designadamente do Médio Oriente, fazendo aqui uma ponte histórico, literária, musical, entre Ocidente/Oriente, talvez mais entre a Mitteleuropa e esse Oriente (quantas vezes já escrevi oriente? – deixem passar) para nós tão proximamente desconhecido. Quer-me parecer que enquanto em “Zona” a narrativa se estende livremente, surgindo a erudição do autor como sustentáculo do romance, pelo contrário, “Bússola” parece escrito como sustentáculo, melhor, como justificação, da erudição do autor. Mas ainda vou a meio da ponte, claro.



 E agora vou mas é ver o Sporting ali à pedreira…

at the heart of it all


O novo genérico do Inútil, saído dos cartapácios da memória, emergiu graças a cortesia de mão amiga (para não dizer outra coisa), num pacote com os álbuns  the downward spiralfurther down the spiral.

Este tema (at the heart of it all) produzido e realizado a meias com Aphez Twin, não fazia parte do álbum the downward spiral, saído no ano anterior (1994), e do qual further down the spiral emana como irmão em universo, com algumas versões (mas não só) do anterior.

Ambos parte da minha (se bem me lembro) vida de adolescente universitário, algures perdidos em cassetes e viagens de carro com um amigo agora distante. Ele bem os escutava (à época) bradando o desconstrutivismo da coisa. Apenas  após  lançamento de with teeth comecei (acho) a prestar a atenção devida aos NIN. Tenho dois pins que engalanam uma ou outra lapela que o provam.

janeiro 03, 2018

Um simples vestígio fictício de uma respiração

Por obra sem graça de uma série de coincidências, mais ou menos ocasionais, lá cheguei a Marienbad eléctrico:


E, mais uma vez, a Rimbaud, como se estivesse a atravessar uma praça em que apenas se vislumbram pálidas luzes de candeeiros. Tudo isso enroscado no final de 2017, início de 2018. Agora vou ver da minha rua Rimbaud:

Avançar no deserto da vida serviu para constatar que, no final, nada resta do nosso mundo, do ambiente que era o nosso, da nossa amada rua Rimbaud, onde estava o mundo que era o nosso e que já não existe pura e simplesmente.  EVM