fevereiro 29, 2012

O conto ao vigário, a pré irmandade e o culturalismo quase rafaelita


Ao Domingo, lá para o final da noite é quase certo que passa REV. (a gente chama-lhe o vigário) na Britcom (Rtp2), mas não é certo, de todo, que seja a primeira das séries a passar, esta semana por exemplo, foi a segunda, e já seriam 0h25m de segunda-feira. Vale a pena ensopar a insónia típica de domingo, ou simplesmente ensonar com o vigário Adam Smallbone e a sua congregação, Steve, Mick e por aí fora. O vigário Adam é um tipo que se chama Tom Hollander na vida real, mas ainda há dias era o John Ruskin na série Românticos Desesperados, que passava às segundas-feiras na Rtp2, e cuja acção decorre na Inglaterra do século XIX, contextualizando a Irmandade Pré-Rafaelita, ou parte desta, já que alguns dos efectivos da época não aparecem, mas pronto, lá está o Rosseti putanheiro e o Maníaco mais fixe dos pintores na televisão; de qualquer forma, bem melhor que O Mentalista, essa bosta metamorfoseada de inteligência postiça, cujo protagonista é um gajo com o nome da namorada do Tarzan, mais uma gaja chamada Lisbon – um portento de actriz com a expressividade de um paralelepípedo – obviamente sem nenhuma relação com as nossas amigas malucas, as irmãs Lisbon (suicidas), para que conste. Ora, o Ruskin foi um gajo que existiu mesmo, mas mesmo, um tipo que foi poeta, desenhador, esteta, filósofo, entre outros, mas especialmente um pensador da arte, da arquitectura e, sobretudo, da cidade, enquadrado (segundo Choay) no Pré-Urbanismo Culturalista. Sobre isto, evidentemente, muito pouco na série… com o Tom Hollander a confundir-nos entre o esteta filhinho da mamã, às segundas, e o conto do Mick ao vigário aos domingos, mas nem sempre. Fiquem lá com o mentalistazinho…mas apenas às segundas.

Amanheceu assim depois de

fevereiro 26, 2012

As aventuras


Por acaso uma portada aberta denuncia o sol. E logo um fato-de-treino enfeita um corpo que desce a ladeira em direcção à rosca. Água ferve ao lume, já se vê. A páginas tantas escreve-se qualquer coisa sobre limpezas dominicais. E ainda há que acabar o chá pela casa toda. Robinson Crusoe chega mais tarde, fica por perto do gato e conta: “já estava naquela ilha desafortunada há mais de dez meses; qualquer possibilidade de salvamento dessa situação parecia completamente afastada de mim; e eu acreditava firmemente que nenhuma criatura humana colocara um pé naquele sítio”. Uma voz soa então: ”ah, estás aqui?”, “não, não estou”, responde-lhe, por sua vez, outra voz. Eram horas e cheirava a sopa. E mais logo, qual vai ser a táctica?

fevereiro 22, 2012

Bênção por engano


A guerra de trincheiras moderna requer conhecimentos e experiência. Uma pessoa tem de ter uma boa noção da geografia do terreno; os ruídos e efeitos dos diferentes tipos de projécteis no ouvido e tem de saber calcular antecipadamente onde é que estes vão cair, como serão os estilhaços e como abrigar-se.
É evidente que estes jovens recrutas nada sabem de tudo isto. São dizimados porque não distinguem os estilhaços dos explosivos potentes, e são ceifados aos molhos porque ouvem, aterrorizados, os ruídos dos grandes projécteis do tipo «caixa de carvão» – que não são perigosos porque caem muito para trás de nós –, mas não ouvem o silvo, o sibilar baixo daqueles pequenos estupores de pouca envergadura. Amontoam-se como ovelhas, em vez de se afastarem, e até os feridos são caçados como coelhos pelos aviões de combate!
As suas caras pálidas, de nabos; os miseráveis punhos cerrados; a deplorável bravura destes pobres diabos, que, apesar de tudo, avançam e atacam…Pobres diabos ousados, tão massacrados que já nem se atrevem a gritar, apenas gemem suavemente os nomes das mães no meio do chão – com os peitos, as tripas e os braços desfeitos – e calam-se quando alguém se aproxima! 
As suas caras esquálidas, pubescentes, mortas, têm aquela horrível ausência de expressão que se vê nas crianças mortas.
Ficamos com um nó na garganta quando os vemos. A forma como saltam para fora da trincheira e correm e caem…Apetece-nos desancá-los por serem tão descuidados e pegar neles e levá-los daqui, afastá-los deste lugar, onde não pertencem! Envergam uniformes de combate – calças, botas da tropa… –, mas os uniformes são demasiado grandes para a maioria deles e ficam-lhes largos, pois os seus ombros são demasiado estreitos e os seus corpos demasiado franzinos. Não se fazem uniformes para estes tamanhos de criança
…"

“A oeste nada de novo”, Erich Maria Remarque. Edições Saída de Emergência.
Para além da adopção das regras do novo acordo ortográfico (neste pequeno excerto, obviamente, não respeitadas), a tradução (de Luís Miguel Coutinho) é feita a partir de uma versão inglesa , o que manifestamente não se compreende a necessidade. Em vez de baixarmos as calcinhas reiteradamente aos alemães noutras situações, mais valia honrar a sua literatura com traduções do original. Não falta para aí quem o faça e que precisa de trabalho.

fevereiro 16, 2012

Em busca do tempo perdido...


“No final de 1916, o governo [francês] «autoriza» os condenados de delito comum a irem para a frente; em Outubro, a lei Dalbiez obriga todos os soldados dos serviços auxiliares e os reformados a serem submetidos a nova inspecção médica. É a caça aos que tinham conseguido escapar ao serviço militar, que Gallieni reclamava em 1914. «Convocam-se mesmo os cegos», conta Paul Morand. «Marcel Proust aguarda ser convocado. Se a convocação vier de dia, o que é provável, não poderá apresentar-se à inspecção pois está a dormir. Teme ser considerado desertor. Pede então a Lucien Daudet se o seu irmão Léon lhe poderia fazer um grande favor de conseguir uma inspecção para a meia-noite» ”.

“A Grande Guerra 1914-1918”, Marc Ferro. Edições 70. Tradução de Stella Lourenço.

fevereiro 14, 2012

O crepúsculo em todo o lado


“Se eu fosse de férias à Grécia, pensava comigo, iria a Estágira inclinar-me perante a memória de Aristóteles, que ali nasceu, se eu fosse à Grécia, então, certamente, nem que fosse de ceroulas com atacadores junto dos tornozelos, correria a volta de honra, em memória de todos os vencedores de todos os Jogos Olímpicos, se eu fosse à Grécia…Se eu fosse à Grécia com aquela brigada socialista de trabalho, far-lhes-ia uma conferência sobre todos os suicidas, sobre Demóstenes, sobre Platão, sobre Sócrates (…) Mas já começou uma nova época, um mundo novo, os jovens pensam noutras coisas, talvez já tudo seja bem diferente neste mundo.”

“Uma Solidão Demasiado Ruidosa” (pp. 85/86), Bohumil Hrabal, Edição Afrontamento.Tradução de Ludmila Dismánova e Mário Gomes

Götterdämmerung

Amanheceu tarde entardece cedo...

fevereiro 11, 2012

Radicais em solilóquio?

Como eu. Sentadinhos no sofá, ou vá, no parapeito da janela, e por vezes deitadinhos na cama, rosnam(os) solitariamente e, não raro, em pensamento, as disfuncionalidades do país. Os primeiros-ministros embusteiros e semianalfabetos, os ministros acéfalos e intrujões, os amiguinhos de uns e outros nos casulos apropriados e proporcionais aos seus ditosos (supostos) conhecimentos e práticas experienciais. A personificação diária do hematoma concorrencial exclusivamente estribado no olha para o que eu digo mas não olhes para o que eu faço, cujo único deleite ideológico radica no enlevo do carcanhol a amparar a carteirinha, o bolso, o saco, a maleta, o cofre, a caixa forte. É isso a sua economia: a capacidade para obter desempenhos poderosos radicados, não raro, numa economia de esforços (que faz com trabalhem em empresas de amigos e acabem um curso apenas para se legitimarem - mais vale tarde que nunca), na gestão de conhecimentos, na contabilidade de apoios e na distribuição de mais-valias. Economia limpinha. Tudo o resto é acréscimo técnico/táctico e semântica paralítica. Não basta por isso dizer basta.

fevereiro 10, 2012

Amanheceu e depois o anjo abancou


"Amava o deserto, os hortos queimados, as lojas decadentes, as bebidas amornadas. Arrastava-me pelas ruelas fétidas e, de olhos fechados, oferecia-me ao sol, deus de fogo.
«General, se ainda tens um velho canhão nas muralhas da tua fortaleza em ruínas, bombardeia-nos com torrões de terra. Aos vidros dos estabelecimentos sumptuosos! nos salões! Obriga a cidade a comer essa poeira. Oxida as gárgulas. Enche os toucadores de pó de rubi ardente...» 
Oh! o mosquito ébrio no urinol do albergue, apaixonado pela borragem, e que dispersa um raio de luz!" 


Arthur Rimbaud, in "Uma temporada no Inferno" (Ulmeiro, Tradução de Margarida Gil Moreira)

Drinker

fevereiro 08, 2012

Deixem-me arranjar um bom título para isto!

E se me perguntassem «o que é que queres ser quando fores grande?», eu responderia, «quero ser jogador do Sporting».
E, se o fosse, garanto-vos que seria necessário partirem-me as duas pernas para eu sair do campo sem a vitória conquistada!

A sorte é ser frio seco


Adequado o lameiro onde nos encontramos. Após uns dias em que o malabarismo televisivo deu para nos entreter com reportagens sobre o frio por esse país fora (sem esquecer os infelizes dos alfacinhas com direito a menções honrosas até nos diários desportivos), ficamos a saber da intrépida iniciativa do poeta VGM recusando a aplicação do acordo ortográfico no elefante lácteo do CCB, recebida ora com loas estratosféricas, ora com o gulag de sobreaviso. Contenda importantíssima, tendo em conta o nível elevado dos escrevinhadores e de gatafunhos que por aí ruminam e se publicam.
Na padaria, entre o pãozinho santo e a sopinha não se falava de outra coisa, “que sim, o Vasquinho fazia muito bem…”, e a Arminda “tão ansiosa pelo novo Lobo Antunes”. Da filha da Inácia, entrevadinha, já pouco se falava, letra morta, e duvidava-se da astúcia do Passos Coelho na Questão Coimbrã actual: o feriado de carnaval. O Esteves, gazeteiro de todos os dias, insurgia-se contra as palavras do primeiro-ministro - “piegas nunca!”, e o aumento dos martinis cerveja, e “não me venham para cá com ivas”, sentenciava...a conversa e o martini. Já de saída ainda escutei, “que trinque a língua dele e vá trabalhar para as obras” e, num último bafejo, uma vozinha, “a sorte é ser frio seco”, pareceu-me, mas posso estar enganado.

fevereiro 06, 2012

A infâmia como uma das belas artes


«Sobre toda a frente do cabeço de Souain, desde Setembro de 1915, os soldados de infantaria ceifados pelas metralhadoras jazem estendidos de barriga para baixo, alinhados como num exercício.
A chuva cai sobre eles, inexorável, e as balas partem os seus ossos embranquecidos.
Uma noite, Jacques, durante uma patrulha, viu sob os seus capotes descoloridos ratazanas a fugir, ratazanas enormes, engordadas a carne humana. Com o coração a bater, ele rastejava em direcção a um morto. O capacete tinha caído. O homem apresentava a cabeça contorcida, vazia de carne: o crânio à vista, as órbitas vazias, os olhos comidos. A dentadura tinha deslizado sobre a camisa podre e da boca escancarada saltou um bicho imundo».

Testemunho de Raymond Naegelen (combatente francês), in “A Grande Guerra 1914-1918”, Marc Ferro (pp.126). (Tradução Stella Lourenço, Edições 70).

fevereiro 04, 2012

Isto a propósito do frio e dos sem-abrigo

Só dorme na rua quem quer.”
Mesquita Machado (Presidente da Câmara de Braga), em entrevista à Rádio Universitária do Minho (03-02-12).

Ficamos descansados, ora essa. Parece que existem por aí uns albergues jeitosos e a sopa dos pobres; como parecem existir por aí uns empregos. Verdade que ninguém sabe o número exacto dos sem-abrigo - ou dos que para lá caminham - e dos desempregados, isto apesar das estatísticas oficiais e do nosso sincero amor pelos números, mas isso serão apenas questiúnculas e devaneios de um vulgo pouco competitivo.
Escutando o Sr. Machado e outros consórcios nacionais, ficamos a saber que só dorme na rua quem quer, só não come quem não quer e só não trabalha quem não gosta de vergar a mola, de sorte que só lá não vamos se não quisermos.
Escutando o(s) Sr(s). Machado(s) do nosso cantinho, ocorre-me logo um livrinho do Alberto Pimenta: chama-se o “discurso sobre o filho-da-puta”. A edição que tenho é da 7 Nós (2010).


fevereiro 02, 2012

Continuar a maravilhar-se


«Compreendi então o que já sabia: o que podemos imaginar existe sempre, noutra escala, noutro tempo, nítido e distante, como num sonho.»

“O último leitor”, Ricardo Piglia
Edição Teorema (2007). Tradução Jorge Fallorca

Amanheceu assim ao frio e de corrida