janeiro 26, 2014

Post mortem (IV)


Diz que foi na baixa idade média da minha vida – nessa altura as trevas tinham um sabor especial e brevemente desembocariam em indumentária a preceito – que recebi a minha primeira aparelhagem a sério: duas bufadeiras de cassetes, gira-discos, rádio digital, garagem para colocação de material diverso, duas colunas de som fabulosas e seis ou sete botões que faziam as delícias das pontas dos meus dedos e inveja aos atónitos parceiros de musicol (quase todos imaginários). Tudo enfarpelado num único espaço geográfico em forma de caixa, cor preta, tampo de vidro e… rodinhas. O significado daquele objecto começou a encaixar no mundo como um abraço que se prolongava do meu corpo, deixando o objecto de ser objecto para ser sujeito e suplemento vitamínico, um caso de adição cuja desmama nem queiram saber. A partir daí as coisas ficaram a mesma merda só que com grande banda sonora e todos os sonhos do mundo. E a avó lá estava para trocar o objecto por escudos. Ou contos. Porque as coisas custa(va)m dinheiro. A cereja em cima do bolo medrou várias vezes, num processo quase evolutivo que descambou no objecto que encima o outro: um leitor de cassetes com auscultadores. Ali ao virar da esquina temporal.

[foto GP]

janeiro 22, 2014

Com o atraso possível, dificilmente sigo uma linha recta [não é Maistre?]

Sabemos que vamos morrer e que estaremos mortos tanto tempo como não estivemos à espera para nascer. É banal dizer-se que a vida é um intervalo ou uma passagem ou um instante. Não é. A vida é uma excepção generosamente comprida à regra nem triste nem alegre da inexistência. A vida está para o nada como o planeta Terra está para o sistema solar a que pertence. Sim, pode haver vida noutros planetas. Mas será uma vida que vale a pena viver? Ou que apenas vale a pena estudar? Sabemos que temos muito tempo de vida: muito mais do que precisamos. O direito à preguiça e à procrastinação está consagrado na nossa vida e faz logo, à partida, parte dela. Sabemos que somos obrigados a pensar, errada e repetidamente, que o tempo em que estamos vivos é importante. E que as nossas noções de declínio ("dantes é que era bom; os jovens de hoje não sabem o que perdem") são lugares-comuns de todas as gerações antes de nós. Sabemos que não há ninguém que não envelheça, desde o bebé que nasceu neste segundo até ao velho que, por ter morrido agora mesmo, deixou de envelhecer. A vida é uma eternidade, por muito que seja bonito fingir o contrário. Chega e sobra para o que queremos fazer. A oportunidade de existir é-nos oferecida. O resto é merda ou ouro. Sabemos que estamos cá para cá estar. E que não haverá segunda oportunidade. O luxo é saber que podemos enganar-nos. É saber que podemos perder tempo. O tempo é o luxo que a nossa vida não só desrespeita como desmerece.

Miguel Esteves Cardoso (in Público 17/01/2014)

janeiro 18, 2014

E comer um fruto é saber-lhe o sentido*



(cliquem que a coisa cresce)

17 de Janeiro de 2014. E assim acontece(u). O arco-íris até já desbotou (na última): vai ser difícil chegar ao pote de ouro. 


[fotos GP]

[*sacado ao sr. Caeiro]