março 27, 2008

Uma casa na padaria

Hoje comecei logo por entardecer. Boas notícias, espalhadas em panfletos televisivos falavam do défice. Boas novas, as graças governativas encaixam-nos 1 % (sim, UM) da descida do IVA. Grande merda - miou o gato. Ainda quinze dias antes era, de todo, impossível, rosnava um arauto do poder. Mas há quanto tempo não vejo televisão?... Decidi-me pela padaria.

As facções, há muito cristalizadas numa ignorância raivosa dividiam duas mesas. Vários telemóveis acompanhavam o galão retorcido pelas horas infinitas. A Sra. mais dona que velhota, vestia-se como a menininha que a acompanhava e que me havia lançado um olhar lascivo. Dir-se-ia gaja moderna (uma e outra), não fosse a carreira de tiro que lhe compunha a boca e, já agora, como todos os modernos, exsudando um ar de absoluta dependência dos pareceres dos outros (sobre a sua modernidade).

O Sr. Dionísio, que não tinha nada de grego, assolapado, na sua eterna cadeirinha, desembocou sua sentença: “Isto agora vai”. Luisinha, que sabia de tudo um pouco e cuja ciência era estimulada pelas revistas lidas no cabeleireiro, examinava a dona quase velhota de fio a pavio, simulou um esgar, enquanto se empoleirava no argumento, sempre sábio, de que “eles é que comem…eles é que comem”. Fiquei sem perceber ao que vinha, enclausurado nesse “eles é que comem”.

Chegado ao balcão, entrevi, camuflado atrás do jornal, um Sr. cuja elegância competia com a sensibilidade de uma placa de cimento, observando-me, em seguida, com olhar cúmplice ”eu dava-lhe a comidinha” e sorriu. Aquiesci. Eu também lhe dava a comida.
“Santinha, são dois pães de água e quatro Whiskys…” E saí.

Já em a casa pensei em Karamallad, (Cossery: “As cores da Infâmia”), que vivia clandestinamente num Mausoléu, quando este expõe sabiamente que “A verdade não tem nenhum futuro, ao passo que a mentira é portadora de grandes esperanças”.

março 22, 2008

Hoje amanheceu assim na Twilight Zone

O dia amanheceu com umas boas 50 e tal páginas de Albert Cossery. Imaginem-no já entradote na idade, fato elegante de linho branco, sentado, bem direito, numa esplanada de Paris. Com os olhos no Egipto.
Conforme Cossery, amo o ócio. Talvez por falta de coragem, julgo, não apresento o seu nível refinado de preguiça. Sou um optimista, em todo o caso, nada irá mudar.
Lanço um soslaio ganancioso a esse deplorável exterior. Rio.

Ossama era ladrão; não um ladrão legalista do estilo ministro, negocista, especulador ou promotor imobiliário, mas um modesto ladrão de rendimentos aleatórios, cujas actividades - sem dúvida por proporcionarem benefícios limitados ­– em todos os tempos e latitudes têm sido considerados como uma ofensa à regra moral dos ricaços.

Uma excelente partitura em dia de chuva…

“As Cores da infâmia”
Albert Cossery

março 19, 2008

Da marquise com amor: as minhas cassetes parte I

Foi a primeira ou a segunda marquise do bairro. Talvez em finais da década de 1970, inícios de 1980, não sei precisar. Já tinha bicicleta, eu, e o meu primo Fredinho, a dele teria sido a primeira do bairro e a minha a segunda. Já saberia há muito nadar, logo estaríamos em finais da década de 1970.
Embora a cerca de 15 km da costa, da marquise podia ver-se o mar, ainda antes de o Virgílio Ferreira escrever que da sua língua tal também era possível. Não achei estranho. Tinha a poesia como mochila, aliançada às costas, e a vida a tiracolo com fisgas, arcos, piões, livros de banda desenhada e metáforas comprometidas com a natureza.
Às vezes ao atravessar a bouça para casa, sonhando acordado, benzia-me sorrateiramente e corria, fugindo daquele tufo incómodo que resistia ao apelo inexorável da cidade. Uma dúzia de pinheiros, uma mesa de pedra e alguns pássaros, ainda assim menos que as pressões de ar que os varavam, os alçapões e outras armadilhas. À sua volta quintas esfomeadas e algumas casitas, até se perder tudo no rio.
Observava as raparigas da janela com o nariz espalmado entre a vidraça e os cortinados feitos pela mão da avó, enquanto invadia a Alemanha por terra ou a bordo de um Spitfire. Descobria o Buffalo Bill a farejar algo com os seus amigos peles-vermelhas (eu era um Comanche) e as montanhas do Arizona, e jogava insanamente futebol de mesa com bancadas pré-fabricadas. O Sporting foi muitas vezes campeão.
Outras vezes lia. Não raro, tocava o telefone com um triiim fabuloso a dar com o encarnado da sua veste e eu acordava. Por ali lanchava e pintava bolas de borracha com símbolos da Adidas. Tudo feito à mão.
Na marquise comecei a gravar as minhas cassetes num pequeno gravador com rádio. A primeira gravação deve ter sido dos dias mais venturosos da minha existência. É disso que se tratará…das minhas cassetes.

Hoje amanheceu assim na Twilight Zone

Perigo!

março 16, 2008

Hoje amanheceu assim na Twilight Zone

Ao embocar na padaria soube logo que, ao que consta, uma dita e conhecida senhora, “oh encontrei-a ontem na Igreja, ninguém diz, oh ninguém diz, que tem 83 anos, muito bem posta…”, afinal não seria filha do senhor Braga, “é mais um mito”-continuou a Sr. Dona de cabelo curto, “é mais um mito”. "Muito bem posta".

Foi regurgitado, de seguida, para um corredor repleto de homens fatiota, bem postos, claro, no seu dia da demanda da rosca. “Uma regueifa senhora Santinha, quentinha”, alinhavou o bigode à direita, de gravata em riste, “torradinha”, acrescentei eu, conhecedor, “torradinha”, acrescentou o bigode, para não ficar atrás do pedaço de massa informe com óculos e boina, que era eu. Ao Domingo.

Saí, com a convicção de fazer (é assim que se diz?), um piercing num ângulo acoplado ao genital, só para mandar à fava o Sr. Eng. Técnico que capitaneia este país. Parece que vai ser proibido. Sempre quero ver como vão fiscalizar.

março 14, 2008

Hoje amanheceu assim na Twilight Zone

De tudo isto só tinha retido uma coisa – a demonstração que o encadeamento dos acontecimentos da vida constitui um impasse, por largo e transitável que possa parecer. São os pequenos caminhos que nos podem conduzir àquilo que perdemos: são as mensagens gravadas no nosso corpo, em letras microscópicas, quase invisíveis, que encerram a solução dos nossos mais transcendentes mistérios, e não as enormes cicatrizes causadas pela fricção da vida exterior.

“O Golem”
Gustav Meyrink

março 12, 2008

março 11, 2008

Hoje amanheceu assim na Twilight Zone

Ao adormecer

Perdi cerca de 17 minutos da minha vida à volta de um programa da Sra. Fátima (deus a guarde), sobre (pareceu-me), a temática (pertinente?) de um regime monárquico versus republicano. Coisa de importância transcendental, dada a presença de iminências a toda a prova. Da sapiência em seu redor, não posso falar, sem deixar de fora o meu gato, monárquico na pose, mas republicano de sapatilhas, quando toca a comidinha e a pêlo lavado (pelo próprio), que nestas minudências não demanda nem confia outrem.

Tomando o gato por ensaio, à laia de pensamentos de cabaré, vá lá, ainda tentei esboçar um artigo de repasto cerebral, mas logo contido, num enfrascar de benfica com letra pequena a denunciar os melhores dias do burgo. Deve o dito ilustrar-se, por ser sempre segunda-feira de romantizar, no entreposto dos camiões que o carregam, com enfado, mais a inteligência das cortes às costas. Por cá ficam os burros e os pobres, a desmamar mais um programinha. Pertinente.

março 09, 2008

Podia ser hoje

Já está tudo escrito há muito tempo, igual o pensava Borges. Andam, alguns, a reescrever para não entediar. De resto, o mundo todo está igual, ou quase. Está pior.

Representamos uma comédia de um nosso autor, que eu me admirei que fossem poetas, porque pensava que o sê-lo era coisa de homens mui doutos e sábios e não de gente tão sumamente leiga. E está isto já de tal maneira que não há autor que não escreva comédias, nem actor que não faça a sua farsa de mouros e cristãos…

Francisco de Quevedo(1580-1645)
"O Buscão"
Tradução de João Palma Ferreira
Livros do Brasil

Hoje amanheceu assim na Twilight Zone

março 07, 2008

O que faz um homem nesta terra para se divertir?...

Tenho diligenciado, com uma vontade férrea, ver um telejornal até ao fim. Hoje, como aliás ontem, a coisa resvalou para a hora e picos. Uma autêntica longa-metragem. Mas com péssimo argumento e diminuta classe artística. Ou se quisermos, assim-assim, de acordo com a baba relativista.

Valeu pela viagem de uns alunos açorianos aos esplendores da capital. “Tem mais prédios que na tua terra, não tem?” – Atravancou a jornalista, como se estivesse a falar para uma espécie rara de ornitorrincos, enquanto lhes atirava amendoins. Comem amendoins, não comem?...

Hoje amanheci assim na Twilight Zone

março 05, 2008

Ontem...

Ao jantar encarreirei num branco frisante a lembrar Coimbra em sobras de domingo à noite. O Sr. beba comigo fire water, dizia nesses tempos o Sr. Munuel à tropa Inglesa que emborcava no 10A, ali à Henriques Seco, perto da pousada, sem saber da cepa torta. Bebi mais dois, à sua graça, e ainda mais um para a ressaca.

Gostava do Manuel, divorciado, homem dos copos, de fins-de-semana com o filho e/ou a mãe, da carne assada à Moçambique e do famoso espumante em cascata, que de putas era homem cheio. Bebia connosco, sem rodeios, em copos cheios de desgraça.

Um dia perdi-o no jardim da sereia, mas nunca fui esquisito com o Sr. Manuel.

Hoje amanheceu assim na Twilight Zone

março 03, 2008

Da bola com amor

Tudo começou com um triângulo invertido desperdiçado em favor de um losango que de inverter não pode ter nada. Sentei-me num 4x4x2 e fui-me à Sagres com um corrimão de desejos. Um costumeiro “não ligo nada a isto” insinuava-se com as bolinhas do nariz na virtude de dona Rosa.

À minha direita dois rapazes de fumeiro. O primeiro comunicando por estalidos como aqueloutro do filme que levou com uma garrafa de Coca-Cola na cabeça. O segundo, avinagrado desde a placenta, recordou-me um dito do Quevedo (que ando ler) de O Buscão:” – Por ressuscitar está este Lázaro, que de tal modo fede”. Coisa com 500 anos e outras cepas.

Depois andei de Sagres em Sagres até ao embarcadouro de Sines, onde repeniquei uma sandocha de carne requentada em memória de empatas.

Da bola com amor apenas ficou um “o que tu queres é o teu ao fim do mês”, do avinagrado descobrindo a pólvora seca…

Hoje amanheceu assim na Twilight Zone