outubro 31, 2012

Tá tudo, ou falta pintar?


- Tá tudo...


Olha se não parece a assembleia da República: lá está o dormitar relaxado, lá está o sorriso néscio e um outro, maléfico, de quem observa, com gosto, o barco a afundar; e os outros, os que (supostamente) querem chegar às filas da frente, a aquecerem o lugar.

outubro 30, 2012

A avó: o espectro sublime



«Houve então algo que fez estremecer os marceneiros, que foi ver a velha Lorrain, aquele espectro sublime, de pé à cabeceira da sua menina. O terror e a vingança insinuavam as suas chamejantes expressões em milhares de rugas que lhe franziam a pele de marfim amarelecido. Aquela testa encimada de esparsos cabelos grisalhos exprimia a cólera divina. Com aquele poder de intuição que é próprio dos velhos perto da sepultura, lia toda a vida de Pierrette, na qual, de resto, pensara durante a viagem. Adivinhou a doença de rapariga que ameaçava de morte a sua menina querida! Duas grossas lágrimas penosamente brotadas dos seus olhos brancos e cinzentos, a que os desgostos haviam arrancado pestanas e sobrancelhas, duas pérolas de dor formaram e lhes transmitiram uma assustadora frescura; foram engrossando e rolaram-lhe pelas faces ressequidas sem as molhar.»

“Pierrette” (pp. 127), Honoré de Balzac. Tradução de Pedro Tamen. Relógio D’Água.

outubro 28, 2012

Aqui é mais apeadeiros, até ver, mas temos os 10 milhões de baixo


«Estamos, com efeito, em plena Book-Season, a estação dos livros.
Estes dois meses, Setembro e Outubro (e eles merecem-no, porque, como cor, luz, repouso, são os mais simpáticos do ano) têm acumulado em si as mais interessantes seasons, as estações mais fecundas da vida inglesa.
A London-Season, celebre estação de Londres, quando a Aristocracia, maior e menor, os dez mil de cima, como se dizia antigamente, o folhado, como se diz agora, recolhe dos parques e palácios do campo aos seus palacetes e jardinetes de Londres – passa-se em Abril, Junho, Julho, verdade seja. Mas essa é uma vã e oca estação de trapos, de luvas de vinte botões, de lacaios, de champagne, de batota e de cotillon. Enquanto as outras!...
Olhem-me para estas sábias, úteis, viris, solenes seasons, que abundam nestes dourados meses de Setembro e Outubro. Isto sim! Aqui temos, por exemplo, a Congress-Season, a estação dos congressos. Que espectáculo! (...)»


“Acerca de Livros”, in Cartas de Inglaterra.
Eça de Queirós. Europa-América.

outubro 24, 2012

Como sabemos, “todo o mercador aspira à burguesia”, vai daí, os primos:


«Rogron e Sylvie, estas duas máquinas sub-repticiamente baptizadas, não possuíam, nem em germe, nem em acto, os sentimentos que conferem ao coração a sua vida própria. Por isso, aquelas duas naturezas eram excessivamente fibrosas e secas, endurecidas pelo trabalho, pelas privações, pela memória das suas dores durante uma longa e rude aprendizagem. Nem um nem outro lamentavam qualquer infelicidade. Eram, não implacáveis, mas intratáveis para com as pessoas em dificuldades. Para eles, a virtude, a honra, a lealdade, todos os sentimentos humanos consistiam em liquidar as letras regularmente. »

“Pierrette” (pp. 28), Honoré de Balzac. Tradução de Pedro Tamen. Relógio D’Água.

outubro 23, 2012

Tínhamos encontrado Cesárea apenas para lhe trazer a morte


Lupe disse-me que somos os últimos real visceralistas que restam no México. Eu estava estendido no chão, a fumar, e fiquei a olhar para ela e disse-lhe não me lixes.

“Os detectives salvagens”, (pp.622), Roberto Bolaño. Tradução Miranda das Neves. Teorema/leya.

[mata(dor)]

As minhas cassetes 93: Felt (bom dia)

I've spent my life inside of a cell
With no doors
Just four walls
Like living in hell
I've chickened out of things in the past
But now i know
When death calls
I'll be ready to go
And i said it's good morning
There's a new day dawning
Good morning to you
To you

outubro 22, 2012

Uma carta aberta aos sportinguistas


O Inútil recebeu na sua padaria (por e-mail), uma carta, de um leitor devidamente identificado. Fica aqui a  sua transcrição na íntegra:

«Uma carta aberta aos sportinguistas

Consegui ver mais de quarenta e cinco minutos do jogo (de ontem) sem me distrair muito. Note-se. Por momentos, alguns momentos, minutos ou mesmo segundos, parecia um jogo da liga dos campeões, tal a intensidade - estamos a falar de segundos -, tal a aventura psicológica que dramatiza qualquer lance, tal a incerteza quântica do marcador, e essa incerteza do marcador é que é o busílis, o caralho do nó górdio. “Mas quem é aquela equipa que está a jogar contra o Sporting?”- perguntava um extraterrestre, a quem tinham contado as ufanas histórias de jornadas de luta leoninas, as épicas todas, o sofrimento enlevado, “mas quem é aquela equipa?”, gritava já o extraterrestre, dilacerado pela dúvida e pelos pontapés do meio da rua (sem marcação) de um gajo chamado Pablo, quem sabe Pablito, para os amigos.  Mas tivemos oportunidades: ouvi bem. Pudera, mais faltava, não as termos. A questão pertinente é o quem pode e não o quem quer. A incerteza existe, é um jogo, mas a doutrina do quem pode ensina-nos a perspectivar, a construir cenários, e para isso, para poder, impõe-se identificar, em primeiro lugar, as próprias fraquezas, depois as fraquezas dos outros, e só depois se enfatizam as potencialidades, mas estas últimas, devem apenas ser reconhecidas e veladas pelos timoneiros, aos outros os bicos de pés podem ser nocivos. Os timoneiros devem ser em número reduzido e circunscrito, e daí para baixo, ou até para o lado, qualquer açaime é aceitável na conjuntura definida. Depois disto, que não é pouco, poderemos eventualmente começar a falar de jogo, como se diz?, propriamente dito.

Saudações sportinguistas,
Exuberante da Silva »


[maradona]

E agora algo completamente diferente: o próximo treinador do Sporting será Dominguez?



Estamos a falar do cenário mais lógico, consentâneo com o desvario recente, na senda dos bons resultados. Com licença. 

outubro 21, 2012

O tio era: “a imagem vaga de um vasto vinhedo batido pelo granizo”


«Rogron gostava da boa mesa e de ser servido por raparigas bonitas. Pertencia à seita dos egoístas de comportamento brutal, dos que se entregam aos seus vícios e fazem as suas necessidades com todo o descaramento. Ávido, interesseiro, pouco delicado, obrigado a satisfazer as suas fantasias, foi comendo os seus lucros até ao dia em que lhe faltaram os dentes. A avareza manteve-se. Na velhice, vendeu a estalagem, ficou, como se viu, com toda a herança do sogro, e retirou-se para a casinha da praça, comprada por tuta e meia à viúva do tio Auffray, avó de Pierrette.»

 “Pierrette” (pp. 23), Honoré de Balzac. Tradução de Pedro Tamen. Relógio D’Água.

[brasserie]

outubro 19, 2012

Manuel António Pina (1943-2012)


«Ninguém me roubará algumas coisas,
nem acerca de elas saberei transigir;
um pequeno morto morre eternamente
em qualquer sítio de tudo isto.

É a sua morte que eu vivo eternamente
quem quer que eu seja e ele seja.
As minhas palavras voltam eternamente a essa morte
como, imóvel, ao coração de um fruto.

Serei capaz
de não ter medo de nada,
nem de algumas palavras juntas?»

Manuel António Pina, “O Medo” in Nenhum Sítio

Momento Tricky




outubro 18, 2012

A padaria Portugal



Não sei porquê, dei comigo a pensar no Venitchka, anti-herói e alter-ego de Erofeev no seu “De Moscovo a Petuchki”, que nas suas deambulações nunca encontra o Kremlin, acabando por ir dar sempre com as fuças à estação de Kursk, pois a minha estação de Kursk é a padaria, e por mais voltas que dê, acabo sempre por lá esbarrar. Numa dessas, o Careca dissertava às moças, de um lado a menina balcão, de outro, a menina Joli, morena, um moreno de praia, nada de solários ou de base, segundo a própria. O Careca animava-se, reafirmava o vício do dinheiro como o supremo dos vícios, nunca saciado, comparando-o, claro está, ao sexo, e num murmúrio, com as mãos em concha, explicava condescendente que, mesmo no sexo, chega um momento em que estás saciado, não é?, dizia entre risinhos. E as meninas riam, também.
Entra o Silva, cheira-lhe ao Mendes. Já aí estão. O Silva entre o boa tarde e a Super, murmura um arrastado impressionante e, como não obtendo resposta, remata que as manifestações dos últimos tempos são manifestações de crédito, eu sempre disse, obviamente de crédito, eu sempre disse, pelo menos, as auto-estradas existem, já o buraco do BPN não se vê, é o buraco sem fundo, acrescenta, picando o Mendes, que riposta que o problema é o 26 de Abril, mas sem referir de que ano, acrescentando um enigmático tem que se ensinar, ao que o Silva contrapõe o clássico eu sempre disse. A menina Joli termina o segundo galão, repetindo o seu moreno de praia, e a menina balcão acumula um claro, claro atrás do outro, um claro de assentimento geral que o Careca nem repara, continuando a sonhar alto, insaciável.
De saída, recordo o Tabuletas e os seus fogos, e por momentos penso que a questão do pão branquinho e mal cozido não é apenas um problema de padaria pós-moderna, nem da qualidade dos produtos ou dos padeiros em parcimónias de moina, as pessoas simplesmente gostam assim, que se há-de fazer. 

outubro 17, 2012

A sua teoria era estapafúrdia, e não resistia ao menor exame?


«Tudo tinha começado, segundo Pele Divina, com uma viagem que Lima e o seu amigo Belano fizeram ao norte, em princípios de 1976. Depois dessa viagem, ambos começaram a fugir, primeiro pela Cidade do México, juntos, depois pela Europa, já cada um por sua conta. Quando lhe perguntei o que é que os fundadores do realismo visceral tinham ido fazer a sonora, Pele Divina respondeu-me que tinham ido à procura de Cesárea Tinajero. Depois de viver uns anos na Europa, Lima regressara ao México. Talvez achasse que já tudo estava esquecido, mas os assassinos materializaram-se uma noite, depois de uma reunião na qual Lima tentava reagrupar os real visceralistas, e ele teve que fugir. Quando lhe perguntei porque é que alguém havia de querer matar Lima, Pele Divina disse que não sabia. Tu não viajaste com ele, pois não? Pele Divina assentiu. Então como é que sabes essa história toda? Quem é que ta contou? Lima? Pele Divina disse que não, que quem lha tinha contado fora Maria Font (explicou-me quem era Maria Font) e que lha tinha contado o pai. Depois disse-me que o pai de Maria Font estava num manicómio. Numa situação normal, ter-me-ia desatado a rir ali mesmo, mas quando Pele Divina me disse que quem tinha espalhado o boato era um louco, senti um calafrio. E também senti pena, e pensei que estava apaixonado.»

“Os detectives salvagens”, (pp.358-359), Roberto Bolaño. Tradução Miranda das Neves. Teorema/leya.

[poema

outubro 12, 2012

A consciência radical é inconciliável com a ideologia e que mais?


«Tal como a economia em crise que não perece se torna economia de crise, a crise da cultura que sobrevive torna-se cultura de crise. O surrealismo é, assim, a encenação de tudo o que o passado cultural possui de recusa das separações, de tendência para a superação, de luta contra as ideologias e contra a organização espectacular»

“História desenvolta do surrealismo”, Jules-François Dupuis. Tradução de Torcato Sepúlveda. Antígona. 

[surreal]

outubro 11, 2012

Diz o cangalheiro



O André Breton do terceiro Mundo


«Eu não sei francamente o que é que eu fazia de mal. Quando contaram a Belano o que se passou no Príapo’s, ele disse que nós não eramos nem rufias nem chulos, mas eu a única coisa que fiz foi dar saída à minha sensualidade. Em minha defesa apenas pude balbuciar (em tom de chalaça, sem sequer o olhar nos olhos) que eu era um mostro da natureza. Mas Belano não percebeu a piada. Na opinião dele, eu fazia tudo mal. Ainda por cima, não fui eu que convidei Luis Sabastián Rosado para dançar. Foi ele, que estava perdido de bêbado e deu-lhe para ali. Gosto de Luis Rosado, é o que eu lhe devia ter disto, mas quem é que dizia alguma coisa ao André Breton do terceiro mundo?»

“Os detectives salvagens”, (pp.170), Roberto Bolaño. Tradução Miranda das Neves. Teorema/leya.

outubro 08, 2012

O nosso mundo é um parque temático (marketing Rimbaud?)

vivo abancado como um anjo no barbeiro
Rimbaud

O texto, após uma tirada sobre solas de vento, começa assim:
Rimbaud passou a vida a evadir-se de Charleville, mas a cidade e os campos das Ardenas são indissociáveis da sua poesia. Agora a lenda do poeta maldito tornou-se na principal atracção turística da região, dando origem a um sortido de circuitos que iluminam a sua poesia ao mesmo tempo que levantam o véu sobre a França profunda que a viu nascer. (daqui)

Rimbaud, o tal que muitos conhecem e poucos lêem. Não me parece que ele se importaria muito com isso. Como, de igual modo, cedo se borrifou para a poesia, preferindo viver [poesia?] a escrever, borrifando-se en passant para a França e para os franceses. Depois foi o que não se viu.
Pensei em qualquer coisa de “uma temporada no inferno” ou “uma cerveja no inferno”, na tradução de Cesariny para a Assírio, mas deixo antes um poema que Rimbaud escreveu talvez para o inútil, retirado do livro “35 Poemas de Rimbaud”, com a tradução de Gaëtan Martins de Oliveira, para a Relógio D´Agua, edição de 1991 (o meu primeiro livro com a poesia de Rimbaud).  

«Portas Brancas, beirais soturnos
Assim por domingos nocturnos,

No fim da cidade silente
A rua é branca, a noite assente.

É rua de estranhas moradas,
São feitas de anjos as portadas.

Mas junto a um poste já se avia,
Transido num jeito rufia,

Um negro anjinho a vacilar
De tanta jujuba enfardar.

Põe-se a cagar: desaparece:
E a caca maldita parece,

À vaga lua imaculada,
Branda cloaca ensanguentada!»

[“L´Angelot maudit”] – “O anjinho maldito”

[marketing rimbaud, foda-se?]

outubro 03, 2012

[to be continued]

Militâncias políticas dos visceralistas


«Moctezuma Rodríguez é trotskista. Jacinto Requena e Artur Belano foram trotskistas.
Maria Font, Angélica Font e Laura Jáuregui (a ex-companheira de Belano) pertenceram a um movimento feminista radical chamado Mexicanas ao Grito de Guerra. Supõe-se que lá é que conheceram Simone Darrieux, amiga de Belano e propagandista de um certo tipo de sado-masoquismo.
Ernesto San Epifanio fundou o primeiro Partido Comunista Homossexual do Máxico e a primeira Comuna Proletária Homossexual Mexicana.
Ulisses Lima e Laura Damián planeavam fundar um partido anarquista: ainda existe o rascunho de um manifesto de fundação. Antes, aos quinze anos, Ulisses Lima tentara ingressar no que restava do grupo guerrilheiro de Lúcio Cabañas.
O pai de Quim Fonte, também chamado Quim Font, nascera em Barcelona e morrera na batalha do Ebro.
O pai de Rafael Barrios militara no sindicato dos ferroviários clandestino. Morrera de cirrose.
O pai e a mãe de Pele Divina nasceram em Oaxaca e, segundo diz o próprio Pele Divina, morreram de fome.»

“Os detectives salvagens”, (pp.78-79), Roberto Bolaño. Tradução de Miranda das Neves. Teorema/leya.

[sebastião]