outubro 20, 2017

Que farei quando tudo arde*?


Frequentei Engenharia Florestal no início dos anos noventa do século passado. Já nessa altura tínhamos a época dos incêndios, mas a época preferida era a dos subsídios, que normalmente durava todo o ano, sem qualquer fiscalização. Nunca, como então, existiram tantos projectos imaginários. O dinheiro circulava, mas apenas alguns conseguiam apanhar boleia. Em algumas dessas boleias foram exauridas as verdadeiras hipóteses de uma reforma florestal planeada. Para isso seria necessário pensar o país como um todo. E o país, nessa altura, tinha a forma de uma betoneira.

Na época dos subsídios o eucalipto começava a dar cartas. As monoculturas florestais, eucalipto e pinheiro, caminhavam de mãos dadas com o despovoamento do interior. Não lhe chamem, por favor, desertificação. Vegetamos, é certo, mas ainda não somos uma espécie vegetal. Com o país a sonhos, modernos, construímos auto-estradas, urbanizações desreguladas, feias, cidades esquecidas da sua história e património (isso veio muito depois), e abandonamos, com enfado, a agricultura. Vieram as ligações público-privadas, os aviões, os helicópteros, as comunicações via satélite. Festejávamos (e festejamos) a época dos fogos com foguetes. Afinal, as bouças eram boas como depósitos de lixo, de abandono, e algum sexo à beira das estradas.

Eternas reformas adiadas, ou parcialmente esquecidas, eternos estudos e debates depois, chegamos ao caos de 2017. Ainda existe uma época definida para os incêndios (como é possível?), a denominada fase Charlie, que acompanha a silly season , sem saber que a silly season em Portugal se vem diluindo, alargando as suas fronteiras. Basta ligar a televisão. Parece que tudo falhou. Vem no relatório da comissão independente. Parece que fenómenos climatéricos únicos confluíram em conspiração odiosa. No final, continuámos a falhar. Falhámos cada vez melhor, sei do que falo, sou sportinguista. Só que desta vez morreram muitas pessoas. Demasiadas. Nas ruas, protestos, apenas em frente das televisões. Nem sequer uma onda de indignação, a não ser nas páginas amarelas das redes sociais. Dançam algumas cadeiras. Não tarda voltamos à normalidade dos estudos. 


3 comentários:

Rui Monteiro disse...

Caro Gabriel,

Nestes dias de brasa, foi dos comentários mais lúcidos que li. Sou Engenheiro Agrónomo de formação. Estudei no Instituto Superior de Agronomia nos anos 80 do século passado. Comecei por trabalhar como economista agrário, fazendo alguma investigação. Fui para a tropa e fui posto a reordenar o Campo Militar de S. Jorge em Leiria. Procurei cortar e vender pinheiros e fazer reflorestação. Para ganhar a vida, aos fins-de-semana fazer uns projectos florestais com um amigo meu.

Regressei à profissão e procurei fazer um plano de desenvolvimento agrário na zona de basto. Não deu em grande coisa e voltei para a cidade, para o meu emprego actual e para a universidade. Trabalhei e ensinei nestas áreas durante anos. Disse e escrevi algumas coisas como estas. Cansei-me, porque trabalhar nesta área não tinha futuro nenhum, como não têm futuro nenhum os nossos territórios de baixa densidade.

Passei a ser um economista como os outros e um professor de economia como os outros. Especializei-me em elaboração de programas financiados por fundos comunitários e negociações comunitárias. Ando nesta vida há demasiados anos e negociei com colegas muitos milhares de milhões de euros com a Comissão Europeia. Os resultados desses milhares de milhões? Têm dias.

Um dia destes temos de ir tomar um café para conversarmos sobre esta e outras vidas.

Um grande abraço

Gabriel Pedro disse...

Caro Rui,

Muito obrigado.
O meu curriculum é bem mais modesto, diga-se de passagem. O Rui sabe bem do que fala, combateu nas duas frentes. Espero sinceramente que não voltemos à "normalidade dos estudos". Disso anda o país cheio.

É claro que temos que marcar um café. E uma boa conversa.

Um abraço!

Rui Monteiro disse...

Caro Gabriel,

Ter curriculum é uma forma de ser velho. Penso que tenho o seu email. Vou-lhe enviar o meu contacto para ver se encontramos disponibilidade. Trabalho no Porto, mas vivo em Braga. Com muita frequência, mais do que desejava, vou a Lisboa. Entre Porto e Lisboa vive praticamente o país todo. Haverá hipóteses de nos encontrarmos.

Um abraço.