dezembro 16, 2009

As ruínas não circulares

Estava a tentar ver televisão quando me sobreveio dos confins da memória o meu antigo recreio. Na minha primeira escola primária, em verdade, uma escola proveniente do aproveitamento de uma antiga casa do século XIX, em pleno centro da cidade, e em que orgulhosamente participei no seu encerramento na década de 1970, no final da segunda classe, deparei com meu primeiro recreio. Não seria propriamente um pátio, no sentido a que este normalmente está associado, mas um campo de terra rectangular, para onde nos levavam umas escadarias de pedra que desciam de ambos os lados das traseiras do edifício. Um gigantesco rectângulo parecia-me à época, já infestado nas margens de arbustos e ervas daninhas, com um centro pelado pelas correrias e jogatinas de futebol e, à margem, junto à casa, igualmente desgastado pelas meninas, nos seus jogos. Nessas incursões, vi jorrar sangue a primeira vez a sério, e não posso esquecer as tentativas frustradas de fuga à reguada conectadas por um medo miudinho que (ainda) ultrapassava o respeito. Para além disso, podia-se sonhar à tripa forra, não apenas na escola e no recreio, mas no caminho de casa, cheio de curvas que o adiassem, gelados de coca-cola e batoques e, depois, finalmente o rio. Encontrei igualmente um recreio, ou melhor um pátio, no romance de Vila-Matas, “Doutor Pasavento”, uma “pérola condensada do tédio escolar”, diz-nos Vila Matas, adoptando Robert Walser em Jacob von Gunten, quanto este escreve que «O pátio ficou abandonado como uma eternidade rectangular». De um lado a recreação e do outro o tédio, a terra versus o cinzentismo? Não me parece tão simples. De qualquer forma, a esta distância, e segundo o arquétipo actual, toda a gente iria querer um pátio, limpinho; todavia, creio ainda assim que, a minha antiga escola primária, e não apenas o edifício, ficaram abandonados na sua eternidade rectangular.

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