abril 05, 2020

Isolamento (XI)


Curzio Malaparte parece um nome saído de um Western Spaghetti. Curzio Malaparte é o pseudónimo de Kurt Erich Suckert, nascido em Prato, Itália, a 9 de Junho de 1898, filho de Erwin Suckert, de origem alemã. Malaparte foi quase tudo: teve uma educação proletária (tinha sido confiado a uma família de operários), aderiu ao partido republicano (do qual foi secretário), alistou-se (muito jovem) como voluntário na Legião de Garibaldi, combatendo em França, na primeira Guerra Mundial. Com a entrada da Itália na guerra alistou-se como voluntário, começando, aos dezassete anos, a trepar na hierarquia, de soldado raso a comandante, gaseado em Bligny, as sequelas pulmonares acompanhar-lhe-ão toda a vida. Volta a Itália em 1921, após um périplo (vamos assim chamar-lhe) burocrático por vários países, para trabalhar como jornalista e escritor. Adere ao partido fascista e em 1925 assina o Manifesto dos intelectuais fascistas, já como Curzio Malaparte. Entretanto, vai escrevendo e publicando. Viaja. Trava duelos. Conhece mulheres. Em 1931 publica “Técnica do Golpe de Estado” (já lá vamos). Cai em desgraça junto do partido fascista (as razões são várias) e é condenado ao desterro (curto) em Lipari, passando por Ischia e Forte dei Marmi. Escreve contos, prosa de reflexão, escreve em jornais (às vezes à socapa), edita revistas, eu sei lá que mais.

Pausa. Antes do isolamento cá do burgo, a 8 de Março, lia no blogue “Tempo Contado”, de Rentes de Carvalho: Agora que o medo é tanto e tão espalhado, procuro conforto na leitura de Malaparte, que tão bem soube descrever até que fundo de nós mesmos o medo pode torturar. A imagem de uma das suas obras, “Kaputt”, edição francesa, fazia as honras da casa. Procurei: as plataformas online de vendas reconheciam o autor. Esgotado. Apenas disponível em edições inglesas, espanholas, francesas. Todas as suas obras emblemáticas: A Pele, Kaputt, Malditos Toscanos, As Mulheres também perdem a guerra, O sol é cego, Técnica do Golpe de Estado, entre outras. Tudo (ou quase) havia sido publicado, noutro espaço-tempo, o dos anos 80 do século passado, em várias editoras (Europa-América, Livros do Brasil e colecções com organizadores livres), reflexo de uma época de grandes edições (as traduções são outra conversa), agora apenas disponíveis em alfarrabistas e vendas de usados. Existem muitos autores que definham no limbo dos usados. Eu tinha uma pulga atrás da orelha e esta chamava-se Malaparte.

Dias depois, estava eu deitado a ler “Trieste” de Daša Drndić quando, na página 31, esta faz uma referência ao signor Ugo Ojetti, com direito a uma grande nota de rodapé. Escreve Daša Drndić que o fascismo atraiu um certo número de intelectuais italianos. Mais tarde, escreve ainda Daša Drndić, viram a luz e abandonaram o partido. Lá está Luigi Pirandello (prémio nobel da literatura) e Curzio Malaparte. Em Março de 1925, no Congresso dos Intelectuais Fascistas realizado em Bolonha, o seu Manifesto é assinado por Curzio Malaparte, Tommaso Marinetti, Ugo Ojetti(…) entre muitos outros, escreve Daša Drndić. Ainda não tinha chegado àquela parte do livro onde se lê: atrás de cada nome há uma história. (“Trieste” também faz parte de uma história da decomposição, mas isso ficará para depois). A pulga continuava a insinuar-se.

Arrumações: a sala requeria uma barrela e assim foi. Ao abrir a caixa de primeiros socorros (uma surpresa de aniversário, anos antes), onde supostamente se guardariam elementos indispensáveis à sobrevivência, neste caso, um kit com livros (depois também carregadores de telemóvel), tudo edições Europa-América de bolso compradas em vários devaneios, feiras e arredores: por exemplo, “Da Guerra”, de Carl Von Clausewitz, “O Zero e o Infinito”, de Arthur Koestler e… “Técnica do Golpe de Estado”, de Curzio Malaparte, entre outros. Curzio Malaparte está cá em casa desde 17 de Março de 2016, comprado algures, perdido na caixa de primeiros socorros - abrir apenas em caso de emergência, possivelmente em fila de espera de leituras que se acumulam, ou apenas aproveitamento de espaço vital, não sei, não me recordo.


Edição de bolso de 1983, devidamente enquadrada com uma introdução de Luigi Martellini, escudada numa antologia crítica (Trotski, por exemplo), com uma nota bibliográfica de 6 páginas (a quem este texto é devedor) e bibliografia, e ainda sobra espaço para a obra: “Técnica do Golpe de estado”. A consequência disto tudo é a letra microscópica e um constante focar, mesmo recorrendo a auxiliares preciosos como óculos. Esforço a que nos dedicamos com algum prazer.

Já agora: em 1939 encontramos Malaparte na África Oriental como enviado especial do Corriere della Sera; em 1940, o oficial Malaparte (re)começa a sua viagem pelas ruínas e pela morte (segunda guerra mundial). Edita “O Volga nasce Na Europa”, “O Sol é Cego” e “Kaputt”. Segundo Martellini, estas são as obras que definitivamente cortam com o fascismo. Entre 1944 e 1945 terá solicitado a adesão ao PCI (Partido Comunista Italiano). “A Pele” é editado em 1949 (com o autor a residir em França): escandaloso, antipatriótico, imoral, blasfemo, dizem. Em 1949 Malaparte trabalha (sozinho, é o que consta) em  Il Cristo Proibito, rodado no ano seguinte na Toscânia. O filme é polémico e é premiado em Berlim. Escreve contos, teatro, poesia.

1956: a última aventura. Convidado a ir à Rússia visita igualmente a China de Mao. Está doente. Tem um tumor incurável. Volta a Itália e agoniza durante cem dias numa clínica da Roma. Parece que a sua cabeceira era muito requisitada. A névoa pernoita perto de si. Muitas coisas saem dessa névoa. Curzio Malaparte morre no dia 19 de Julho de 1957.

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